Correio Braziliense, n. 21390, 09/10/2021. Brasil, p. 5

Um país arrasado por 600 mil mortes

Maria Eduarda Cardim


Dezenove meses depois de registrar a primeira morte por covid-19, o Brasil chegou à marca de 600 mil vidas perdidas pela doença. Com mais 615 óbitos computados ontem pelo Ministério da Saúde, o país soma 600.425 óbitos para o vírus que mudou a história do mundo. Em todo o planeta, somente o Brasil e os Estados Unidos ultrapassaram a barreira de 600 mil mortes. Por aqui, a marca escancara uma sucessão de erros protagonizados, em larga medida, pelo governo federal desde que a pandemia chegou. As falhas passam desde a negação da gravidade da situação e da doença, o atraso na compra de vacinas e o desestímulo de medidas básicas, como o uso de máscara. Além de abreviar a vida de centenas de milhares de brasileiros e provocar uma dor profunda na alma do país, a pergunta que permanece é como será o Brasil após ultrapassar essa marca trágica e emblemática da covid-19.

Julio Croda, infectologista da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e ex-diretor do Departamento de Imunização e Doenças Transmissíveis do Ministério da Saúde, chama atenção para o fato de que muitas das 600.425 vidas perdidas para a covid poderiam ter sido salvas caso o governo tivesse tomado atitudes diferentes. "Participei recentemente de um relatório do Imperial College que demonstra que a gente poderia evitar de 28% a 55% dos óbitos que tivemos. Poderíamos ter evitado tudo isso se a gente tivesse um combate mais adequado a pandemia", pontua.

Para ele, o governo federal negou o caráter emergencial da pandemia. Como tem mostrado a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da covid-19, cometeu erros clamorosos, que eventualmente podem ser considerados atos criminosos, na avaliação de senadores. Atrasou o processo de vacinação por questões políticas, minimizou a gravidade da doença, optou por disseminar um tratamento precoce ineficaz, com cloroquina e ivermectina, substâncias sem efeito contra a covid-19. "Essa série de erros mostra que o governo federal nunca liderou o combate à pandemia", avalia Croda.

Em outubro de 2021, o Brasil vive um momento menos dramático, do ponto de vista sanitário, graças à vacinação que o governo tanto relutou em apoiar. Ainda que atrasado, o país conseguiu vacinar a maior parte da população. "92% da população brasileira já tomou pelo menos a primeira dose, e isso demonstra uma excelente aceitabilidade da vacina pela população e isso talvez seja o nosso maior ponto positivo", ressalta Croda.

No momento, o país tem a menor média móvel de mortes e casos desde o ano passado. De acordo com levantamento do Conselho Nacional dos Secretários de Saúde (Conass), são registradas, em média, por dia 453 mortes e 15.011 casos de covid-19. Mas, em absoluto, significa que o momento é de trégua. "O fato de termos chegado a 400 óbitos por dia não é nada a ser celebrado. É alguma coisa que se celebra porque em outros momentos já tivemos quase 4 mil por dia", afirma o infectologista e presidente da Sociedade de Infectologia do Distrito Federal, David Urbaez. Apesar da melhora, os especialistas indicam que o momento ainda é de cautela para abrir mão das medidas não farmacológicas, como isolamento e uso de máscara.

Máscaras
Apesar da situação ainda delicada no país, representantes do governo federal insistem em medidas de relaxamento. Ontem, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, reforçou que é contra a obrigatoriedade do uso de máscaras. Ele indicou que pretende flexibilizar o uso do equipamento de proteção individual em ambientes abertos "o mais breve possível". "Hoje nós temos uma situação mais equilibrada e já podemos pensar em flexibilizar o uso de máscara ao ar livre, desde que o contexto vá cada dia melhorando e a campanha de vacinação vá ampliando. Para quando? Espero que o mais breve possível. Estamos trabalhando para isso", disse.

No entanto, o ministro não disse qual porcentagem da população teria que ter completado a imunização para desobrigar o uso do equipamento em ambientes abertos. Atualmente, é obrigatório, por lei, o uso de máscara em espaços públicos e privados durante a pandemia do novo coronavírus. Para o infectologia Julio Croda, a flexibilização do uso de máscara é algo a ser avaliado de cidade a cidade. "Depende muito dos indicadores epidemiológicos, número de casos, hospitalizações e óbitos", pondera.

Urbaez considera improvável o Brasil enfrentar uma nova onda de casos e mortes, mas ressalta que ainda existem componentes importantes para que a pandemia possa em algum momento se desenvolver com muita gravidade. "É sempre uma necessidade muito grande advertir que é preciso continuar o uso de máscara, insistir no distanciamento e outras medidas. Todo cuidado é pouco", pontua.

A secretária especial de enfrentamento à covid-19, Rosana Leite, avaliou que, para declarar o fim do período de emergência em saúde no Brasil, é necessário olhar para vários critérios, como taxa de incidência, de internação hospitalar, como está a pandemia fora do país também. "Existem vários fatores que vão auxiliar a nossa secretaria a levar para o ministro todas as justificativas para determinar o final dessa emergência", disse.

No entanto, mesmo diante do fim da emergência sanitária, Rosana ressaltou que o vírus vai mudar de um determinado status para outro. "Nós provavelmente pecisaremos continuar com os critérios da prevenção primária, sejam eles com vacinação, seja com medidas não farmacológicas", completou.