Título: Ciência e Igreja
Autor: Paulo Fernando Carneiro de Andrade
Fonte: Jornal do Brasil, 10/04/2005, Internacional, p. A10

A questão da relação entre a Ciência e a Igreja ou, em linguagem mais teológica, entre a fé e a razão, ocupa hoje um lugar especial. D. Cláudio Hummes, cardeal arcebispo de São Paulo, afirmou em entrevista, ao descrever o perfil esperado do novo papa, que esse ''deverá continuar o diálogo com as ciências, com as religiões, com a sociedade, com a biotecnologia, a bioética, enfim, com todas as áreas que estão em uma ebulição muito grande e onde há muitas coisas sendo discutidas, onde é necessário dialogar, procurando sempre soluções que respeitem a ética, o ser humano''. Por sua vez, o cardeal arcebispo do Rio de Janeiro, D. Eusébio Oscar Scheid, entrevistado no dia em que embarcava com destino a Roma para participar dos funerais do papa João Paulo II e do conclave, destacou que o próximo pontífice deverá ser um homem interessado nas questões da ciência: ''É uma característica que o papa que for entrar precisa ter. Se não tiver esta característica, ele necessitará de uma boa assessoria para supri-la''.

Nem sempre as relações entre a Ciência e a Igreja foram tranqüilas. Por vezes, uma interpretação estreita ou mesmo equivocada da fé cristã levou à rejeição de posições científicas que depois não só demonstraram-se como absolutamente corretas, como fizeram a própria compreensão da fé aprofundar-se a ponto de se descobrir que o reconhecimento dessa verdade científica em nada abalava ou chocava-se com a Revelação Bíblica. O caso mais paradigmático é o de Galileu Galilei e das dificuldades da aceitação da teoria heliocêntrica. Do mesmo modo, muitas vezes a razão extrapolou seus limites, seja buscando subordinar a si a fé, seja até mesmo pretendendo negar, em nome da ciência, ou de certa razão filosófica, qualquer possibilidade de transcendência. Coube nesses casos à Fé salvar a ciência, reconduzindo-a a seu campo próprio.

No profícuo pontificado de João Paulo II, destaca-se um grande esforço de aprofundar o diálogo entre a Igreja e as novas questões suscitadas pelas ciências. Como parte desse esforço pode aqui ser recordado o reexame do caso Galileu solicitado pelo papa em 10 de novembro de 1979 em um encontro com a Academia Pontifícia de Ciência. Para o pontífice esse era um passo importante e necessário para remover obstáculos, que o caso ainda provocava, para uma ''frutuosa concórdia entre ciência e fé, Igreja e mundo''. Passados treze anos, ao receber os resultados de uma comissão criada para esse propósito, João Paulo II reconheceu os erros cometidos, não só como um dever de justiça, mas para desse caso tirar ensinamentos ''que sejam atuais em relação a análogas situações que se apresentem hoje e que possam se apresentar no futuro''. Entre esses ensinamentos encontra-se o de que ''as diversas disciplinas do saber requerem uma diversidade de métodos'' e a de que ''o erro dos teólogos do tempo ... foi aquele de pensar que a estrutura do mundo físico fosse, em qualquer certo modo, imposta do sentido literal da Sagrada Escritura'' (Palácio Apostólico, Encontro com a Academia Pontifícia de Ciência, 31 de outubro de 1992).

A Encíclica Fides et Ratio constitui outro ponto alto desse esforço. Nessa encíclica, de 1998, foram colocadas por João Paulo II as balizas fundamentais para o futuro do diálogo entre a Ciência e a Igreja. Nela o papa afirma não existir nenhuma oposição de princípio entre a fé e a razão, que são compreendidas como sendo ''as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade''. Na visão católica expressa na encíclica, tanto a razão quanto a fé são necessárias para o conhecimento da verdade e se solicitam mutuamente, guardando, entretanto, também o seu espaço próprio de realização. Os conflitos que surgem entre a razão e a fé são frutos, ou de uma insuficiente interpretação da fé, ou de uma distorção da razão, ou de ambas as coisas, em um dado contexto ou momento histórico.

Já em 1990, na Constituição Apostólica Ex Corde Ecclesiae sobre as Universidades Católicas, João Paulo II havia dedicado grande atenção ao fato de ser a Universidade Católica um lugar por excelência onde deve se dar o diálogo entre a fé e a razão. De um lado, elas devem consagrar-se sem reservas à pesquisa científica, ''examinando a fundo a realidade com os métodos próprios de cada disciplina acadêmica'' e, de outro, deve cultivar os estudos teológicos, promovendo o diálogo entre a fé e a razão. O papa afirma ''Numa Universidade Católica, a investigação compreende necessariamente: a) perseguir uma integração do conhecimento; b) o diálogo entre a fé e a razão; c) uma preocupação ética; e d) uma perspectiva teológica.'' (n.15).

Nas diretrizes dadas por João Paulo II nesses dois documentos, encontram-se as duas dimensões em que hoje, e no futuro próximo, deve se dar o diálogo entre a razão e a fé. A primeira dimensão é a do reconhecimento do valor da ciência. A Igreja deve receber a ciência como realidade positiva e necessária ao bem da humanidade, estimulando o seu desenvolvimento. A ciência nos permite conhecer de um modo próprio a verdade sobre o mundo, permite também transformar o mundo, humanizando-o. A própria tarefa evangelizadora confiada por Cristo à Igreja pode ser mais bem exercida na medida em que conhecemos melhor o mundo e a sociedade por meio das ciências.

A ciência, entretanto, não é neutra. Cada vez mais, no percurso de seu desenvolvimento, abolem-se as fronteiras entre a produção do conhecimento e a invenção, entre Ciência e tecnologia. A Ciência deve ser submetida à ética. Nem tudo o que podemos fazer, devemos fazer. Há coisas que podemos, mas não devemos fazer. É aqui que se encontra a segunda e fundamental dimensão do diálogo entre a fé e a razão: a tarefa de discernir, tendo por base os valores éticos fundamentais, entre os quais se encontra a afirmação da dignidade de cada vida humana, o que é legítimo ou não no futuro desenvolvimento das ciências, para que essa seja um serviço à vida e não um instrumento de dominação e morte.

Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Professor do Departamento de Teologia e Vice-Decano para Pós-Graduação e Pesquisa do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Vice-Presidente do International Network of Societies of Catholic Theology, de Tübingen, Alemanha.