O Globo, n. 31505, 09/11/2019. País, p. 6

Solto e na oposição
Sérgio Roxo
Isadora Rupp
Thiago Herdy


Ao deixar a prisão após 580 dias, o ex-presidente Lula discursou para militantes e anunciou que vai percorrer o país, posicionando-se como líder da oposição. Com tom crítico, Lula disse que “o Brasil piorou’’: “O povo está passando fome, não tem mais trabalho, está trabalhando de Uber’’. O petista direcionou seus ataques à força-tarefa da Lava-Jato e ao presidente Bolsonaro. Ele se referiu ao “lado podre” das instituições e disse que tentaram “criminalizar a esquerda, o PT e o Lula”. O ex-presidente apresentou e beijou a namorada, Rosângela da Silva. “Aos 74 anos, meu coração não tem espaço par ao ódio, só parao amor.” Hoje, o ex-presidente participa de ato no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. Bolsonaro ignorou a libertação de Lula e evitou criticar a decisão do STF. “Não vou entrar em canoa furada”, afirmou. O ex-governador Eduardo Azeredo, do PSDB, e o ex-ministro José Dirceu também ganharam liberdade ontem.

Ao deixar ontem a prisão, após passar 580 dias em uma cela improvisada da Polícia Federal de Curitiba, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva centrou fogo na força-tarefa da Lava-Jato, acentuou a sua oposição ao governo do presidente Jair Bolsonaro e deu sinais de que pretende voltar ao cenário político com viagens pelo país. Poucas horas depois, o petista adotou tom mais leve em vídeo publicado nas redes sociais. Disse que quer “construir um país melhor” e que não vai “ficar falando mal” do presidente Jair Bolsonaro.

Condenado pelos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro relacionados a reformas feitas em seu benefício pela Construtora OAS em um apartamento tríplex no Guarujá (SP), Lula é um dos quase 5 mil presos beneficiados por alteração da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), que agora não mais permite o cumprimento automático de pena de condenados em duas instâncias judiciárias.

A defesa de Lula havia recusado a progressão de pena para o regime aberto, considerando que, ao aceitar, Lula estaria concordando com sua prisão.

Em seu discurso, o petista disse crer que “dignidade não se compra em shopping center, em feira ou bar ”, eque a sua teria sido ferida por seus acusadores. Prometeu “lutar para melhorar avidado povo brasileiro”, que, segundo ele, “está uma desgraça”. Há tempos numa cruzada contra a força-tarefa da Lava-Jato, o petista fez ataques:

— Se pegar o (Deltan) Dallagnol, o (Sergio) Moro, alguns delegados que fizeram inquérito, enfiar um dentro do outro e bater no liquidificador, o que sobrar não é 10% da honestidade que eu represento neste país — disse o ex-presidente, referindo-se aos agentes como “lado podre” de instituições que trabalharam, em seu entendimento, “para tentar criminalizara esquerda, o PT e o Lula”.

Embora tenha citado o nome do presidente várias vezes ao longo do discurso, Lula direcionou os ataques muito mais na esfera governamental, em uma evidente demonstração de que pretende assumir o lugar de principal opositor do atual governo federal.

— Depois que eu fui preso, o Brasil não melhorou, o Brasil piorou. O povo está passando mais fome, o povo não tem mais trabalho, o povo está trabalhando de Uber, tá trabalhando de bicicleta para entregar pizza, tá trabalhando sem o menor respeito — criticou.

De acordo com o IBGE, a extrema pobreza atingiu 13,5 milhões de pessoas no último ano, maior nível dos últimos sete anos. Estudo da FGV também apontou o mais longo período de aumento de desigualdade da História, com concentração de renda crescente há mais de quatro anos.

Lula agradeceu a lideranças petistas no palco e citou partidos como PSOL, PCdoB e PCO, ensaiando a reorganização de sua base política.

Para o ex-presidente, o petista Fernando Haddad não foi eleito presidente no ano passado “porque a eleição foi roubada”, numa referência a suspeitas de uso de disparos massivos de mensagens de WhatsApp pela campanha de Bolsonaro. O episódio é apurado no âmbito do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Para o petista, Bolsonaro foi eleito “com base em fake news e mentira”.

O ex-presidente cumpriu a promessa feita nos últimos dias e foi ao acampamento “Lula Livre”, em frente ao prédio da polícia, para agradecer a militantes que organizaram eventos em sua solidariedade desde a prisão.

A maior parte do público presente no local era integrante do MST. — Vocês não têm noção do que representaram para mim. Fiquei mais fortalecido, mais corajoso — disse. No cálculo do petista, o ato de ontem foi planejado para ser mais humano do que político. Lula chegou a apresentar aos seus simpatizantes sua namorada, Rosângela da Silva, com quem pretende se casar. Os dois atenderam ao pedido da militância e se beijaram no palco.

Meu coração não tem espaço para o ódio, só para o amor — disse Lula, emendando: — Vocês eram o alimento da democracia que eu precisava para resistir à safadeza e à canalhice que um lado podre do Estado brasileiro fez comigo e com a sociedade brasileira — continuou.

Hoje, Lula organiza um ato político no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo, mesmo local onde se entregou à PF no ano passado para cumprir a sua pena. Na fala de hoje, deve dar mais pistas da linha política que adotará nesta nova fase e indicar como pretende encaminhar a atuação do PT. —O PT sem o Lula é como um time sem técnico. A gente batia muita cabeça sem ele — admitiu o ex-senador Lindbergh Farias.

Lula estava preso em Curitiba desde abril de 2018, em cumprimento à decisão do então juiz Segio Moro, hoje ministro da Segurança Pública e Justiça do governo de Jair Bolsonaro. O então juiz da 13ª Vara Federal determinou a execução da pena após o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) confirmar a condenação em primeira instância do ex-presidente e ampliou sua pena de nove anos e seis meses de prisão para 12 anos e um mês. Posteriormente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reduziu a pena do petista para oito anos e dez meses de prisão.

Sítio de Atibaia

Ontem, o Tribunal Regional Federal (TRF-4) marcou para o dia 27 o julgamento sobre a possível anulação de uma das condenações do expresidente na Lava-Jato. Na sessão, os desembargadores da 8ª Turma, responsável pelos processos da operação na segunda instância, vão decidir se a ação do sítio de Atibaia deve ou não voltar para a fase das alegações finais, após decisão do STF nesse sentido, o que levaria o caso a ser julgado novamente em primeiro grau.