Título: Sobre a chacina: por um luto nacional
Autor: Denise Maurano*
Fonte: Jornal do Brasil, 10/04/2005, Outras Opiniões, p. A13

Entre uma sessão e outra, na turbulência de uma segunda-feira que anuncia uma semana cheia, nessa aceleração característica da vida contemporânea, que nos deixa tão pouco tempo para escaparmos do pragmatismo do quotidiano, sento alguns minutos para almoçar em frente à TV, e de súbito, não dá para engolir. A chacina de Nova Iguaçu é por demais, indigesta.

Mas, o tempo urge, tem gente esperando para ser atendida, não posso perder a hora de viajar, e a chacina ganha o efeito de pesadelo, deixa um mal-estar no ar, mas parece que eu sonhei, parece até que não aconteceu, e a vida segue.

Passado o dia atribulado, feliz ou infelizmente, a mídia não me deixa esquecer, me confirma que lamentavelmente o pesadelo aconteceu de fato, não foi só um sonho mau. Percebo que me esforço para não pensar nesse assunto, já que me sinto impotente diante da magnitude do que está em jogo. Porém, o que se passou é tal forma ultrajante que não dá para esquecer.

Na feira, entre a barraca de frutas e de legumes, me pego pensando: o que será que faz com que façam isso? Como um ato desses, pode vir de humanos? E me dou conta que isso é mesmo próprio dos humanos. Ou seja, não se trata de matar para comer, ou para se defender, como acontece com os animais, mas porque assim se quer e talvez, até por um nadica de nada. Afinal, o crime também revela o poder do humano de subverter a ordem da natureza, artificializar, fazer coisas que até o diabo duvida. Compartilho da idéia de que o que nos faz sujeitos humanos é o processamento que fazemos do desejo do Outro. Ou seja, é a evidência de que, na precariedade com a qual viemos ao mundo, obtermos um lugar no desejo do Outro é uma questão de vida ou morte. Assim o laço com o Outro não é escolha, é condição para se viver. É nessa alteridade que nos inscrevemos, buscamos nosso lugar, garantimos ao nosso modo nosso reconhecimento como alguém, e nos designamos por algo que nos seja próprio.

Agora me digam, a que Outro esses sujeitos responsáveis por essa chacina estão referidos? O comandante da PM diz que é à sociedade e que ela está doente. Sinceramente, me senti ofendida, porque afinal, sociedade somos todos nós, e numa hora dessas, uma resposta assim tão vaga, chega a ser ultrajante! Do presidente do sindicato dos delegados escuto algo um pouco mais preciso. Ele indica que esses PMs criminosos respondem à larga classe dos políticos corruptos a quem eles servem, o que aliás, é tradição na baixada fluminense, e infelizmente, não apenas lá. E acrescenta que a chacina, mais do que representar a represália dos PMs a uma quebra de contrato, já que certas mudanças no comando estão implicando em punições, revela a revolta desses párias em se verem ameaçados por terem feito, ou fazerem o que a classe política espúria sempre lhes pediu ou lhes consentiu que fizessem, então, como agora eles podem ser punidos?

E aí? Será que teremos que lamentar essas punições ou ao contrário, enquanto sociedade, fortificarmos o movimento que pune criminosos, e que identifica e responsabiliza os mais perigosos de todos, nessa quantidade absurda de políticos porcos sustentados por seus currais. A nós sociedade, cabe o quê? Cabe nos indignarmos e manifestarmos essa indignação com toda dignidade. Outro dia na internet, pediram que usássemos algo negro para mostrarmos isso. Se isso tem que começar por algum gesto, o luto, a organização de um verdadeiro luto nacional, talvez seja uma expressão bem adequada para a dor, o medo, a vergonha e a raiva que estamos sentindo. Quem sabe com o luto antecipamos a morte, não sangrenta, mas moral, dessa corja de safados que quase conseguem nos fazer descrer de toda classe política. Quem sabe isso nos ajude a percebermos, sobretudo na hora do voto, que enquanto estivermos ocupados em elegermos aquele que nos prometem vantagens restritas, pessoais, sem olharmos para o resto, estaremos é nos atolando na lama dos currais. Quem sabe nossa luta, deva mesmo começar pelo luto, agora somos nós que vamos assombrá-los com a morte simbólica, essa que é ainda mais veemente porque permite que eles a experimentem em vida. Vamos nessa?

*Denise Maurano é professora da Universidade Federal de Juiz de Fora