O Globo, n. 31529, 03/12/2019. Economia, p. 16

Por ironia, inimigo dos EUA somos nós

Míriam Leitão


O setor do agronegócio dos Estados Unidos é o que mais está sentindo o efeito da guerra comercial criada pelo presidente Trump contra a China. Por isso, ontem, ele inventou um inimigo externo, tática que sempre usa para camuflar seus erros. Desta vez, o inimigo somos nós. E conosco, por ironia, está a Argentina. Os dois países estariam, na delirante explicação de Trump, desvalorizando a moeda deliberadamente para aumentar suas exportações. E de novo mira no aço e no alumínio que já enfrentaram barreiras no governo dele.

Esse é o estilo Trump. Ele cria uma crise contra outros países, dá aos produtores americanos a impressão de que está agindo, e depois faz da retirada do problema, que ele mesmo criou, a sua vitória. Caberá à diplomacia brasileira defender os interesses do Brasil. Ela poderá constatar neste caso o que tem sido dito por todos os analistas que entendem de diplomacia e de comércio exterior, sobre a natureza das relações internacionais.

O que Trump mostrou ontem ao governo Bolsonaro é que países têm interesses e não amigos ideológicos. A resposta de Bolsonaro de que ligaria para ele porque são amigos é patética, tanto que no final do dia já tinha recuado. É preciso ter uma resposta formulada de maneira estratégica. Trump tudo faz de caso pensado e numa entrevista, depois dos ataques matinais no Twitter, voltou a falar contra o Brasil, argumentando que a desvalorização cambial estaria sendo “muito injusta para os nossos industriais e muito injusta para os nossos fazendeiros”.

O que Trump quer? Provavelmente ele está incomodado com a queda da exportação do agronegócio americano para a China, especialmente grãos e proteína animal. Parte da queda se explica pela retaliação chinesa à guerra que Trump iniciou. O governo americano chegou a elevar muito os subsídios à soja, o que desorganiza o mercado. Trump cria um caso na expectativa de falar para o seu público e depois exigir algo. A tática é pôr o bode na sala e depois pedir algo para tirar o bode.

Se ele quiser qualquer coisa que seja autolimitação das exportações do agronegócio para outros países será inaceitável. Mas com Trump é preciso sempre esperar pelo pior.

Nos ataques ao Brasil e à Argentina, ontem, o presidente Donald Trump está tentando confundir uma vez mais. Ele fez referência aos produtores agrícolas antes de dizer que elevaria as tarifas do aço e do alumínio. Em um dos tweets, disse que deu uma grande redução de tarifas ao Brasil. Mentira. Ele elevou as tarifas e depois recuou do aumento no aço, mas impôs cotas ao país. Os exportadores de aço aceitaram essa limitação quantitativa e as exportações caíram este ano 16%. Ou seja, a desvalorização do real nem poderia ajudar a estimular a exportação porque há um limite físico. No alumínio, a indústria brasileira não aceitou a cota e foi mantida a sobretaxa de 10%.

O dólar tem subido no mundo inteiro por inúmeros fatores, e um deles é a incerteza que Trump cria. O Brasil tem outros problemas internos, e a Argentina, ainda mais. Lá, houve inclusive um acordo entre o governo que sai e o governo que entrará no dia 10 de dezembro para impedira continuação da desvalorização. Eles impuseram aos argentinos o “cepo”, uma restrição de acesso à moeda americana.

Nada do que Trump disse ontem fica em pé. Ele nada tema reclamar do Brasil, quenos últimos anos acumulou muito déficit na comércio com os EUA. No ano passado, em dez meses, houve um pequeno superávit para o Brasil, de US$ 50 milhões. Este ano, o superávit dos Estados Unidos está em US$ 1,1 bilhão. Ao mesmo tempo, a exportação brasileira para a China recuou US$ 1,6 bilhão e o saldo comercial encolheu em US$ 1,8 bi. A exportação de soja do Brasil para a China recuou 26% em valor, ou US$ 6,2 bilhões, e o volume teve queda de 16%. Acorrente de comércio coma China caiu de US $83 bilhões de janeiro a outubro de 2018 para US$ 81 bilhões no mesmo período de 2019. Este ano, por sinal, tem sido de quedado comércio internacional, por culpa de Trump.

O real não está sendo desvaloriza dopara estimulara exportação, e os números não mostram qualquer sinal de “comércio injusto” por parte do Brasil. A ironia de tudo isso é que a diplomacia de Bolsonaro estava brigando coma Argentina e declarando I love you para Trump. Agora está de cara coma realidade dos fatos: Brasil e Argentina estão no mesmo barco enfrentando o protecionismo americano e a acusação injusta de estarem manipulando o câmbio para ganharem no comércio internacional.