O Globo, n. 31504, 08/11/2019. País, p. 4

Nova regra, de novo
Carolina Brígido 
André de Souza



Por seis votos a cinco, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu ontem que réus condenados poderão ser presos apenas depois do trânsito em julgado, ou seja, quando não houver mais a possibilidade de recorrer. Com isso, a Corte mudou a orientação vigente desde 2016, que permitia a execução da pena após condenação em segunda instância. Números divulgados em 16 de outubro pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) apontam que até 4.895 pessoas poderão ser beneficiadas. Entre elas está o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, preso desde abril do ano passado em Curitiba.

O placar apertado só foi definido no último voto, do presidente da Corte, ministro Dias Toffoli. Ele desempatou a favor da prisão após trânsito em julgado, diferentemente do que havia feito em 2016. Na sessão de ontem, votaram da mesma forma os ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello, enquanto Cármen Lúcia foi a favor da segunda instância. Esta foi a quinta sessão do julgamento. Nas anteriores, os outros sete ministros já tinham votado.

Impacto na Lava-jato

Até 2009, era possível a prisão na segunda instância, quando o STF decidiu que era necessário esperar o trânsito em julgado. Em 2016, porém, voltou atrás. Agora, no julgamento de três ações que tratam do tema de forma genérica, retorna ao entendimento vigente entre 2009 e 2016. A decisão, no entanto, não é automática, conforme explicaram os ministros Toffoli e Edson Fachin, relator da Operação Lava-Jato, em entrevistas após o julgamento. Os juízes de execução ainda poderão decretar prisão preventiva se considerarem que existem os requisitos previstos em lei para isso, como, por exemplo, periculosidade do réu e risco de fuga.

— As prisões tidas nesse momento como pena podem ser convertidas em prisão preventiva. Portanto, não há, em face dessa decisão, nenhuma liberação automática de quem quer que esteja preso — disse Fachin.

Segundo o Ministério Público Federal, podem ser beneficiados 38 condenados da Lava-Jato, entre presos no regime fechado, no semiaberto ou que usam tornozeleira. Além de Lula, estão na lista, entre outros, o ex-ministro José Dirceu e o empreiteiro José Adelmário Pinheiro, o Léo Pinheiro, da OAS. Segundo levantamento feito pelo GLOBO em outubro, 15 condenados na operação que estão presos poderão ir para casa.

Ontem, Toffoli e Gilmar tentaram dissociar o julgamento da situação de Lula.

Gilmar disse que a discussão sobre a prisão do ex-presidente não ajudou a ter um debate racional na questão. Foi quando Toffoli interveio.

— É bom registrar que a força-tarefa de Curitiba comandada pelo procurador Deltan Dallagnol deu parecer e pediu progressão de regime da pena do ex-presidente Lula — disse Toffoli, acrescentando: — Já não é este Supremo Tribunal Federal que estará decidindo eventual (liberdade de Lula).

Em fevereiro de 2016, Toffoli votou a favor da segunda instância. Em outubro do mesmo ano, ele mudou de ideia e apresentou sua tese pelas prisões a partir do julgamento do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Agora, optou pelo trânsito em julgado. Para justificar os votos díspares, Toffoli afirmou que, nos casos anteriores, foram analisados recursos de réus específicos presos por crimes graves: homicídio e roubo qualificado. Agora, o STF julgou ações sobre a regra geral, sem caso concreto.

Segundo ele, o Código de Processo Penal (CPP), que diz que ninguém poderá ser preso se não em flagrante delito ou em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado, está de acordo com o artigo 5º da Constituição Federal, estabelecendo que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado. Portanto, segundo ele, seria inconstitucional antecipar as prisões de condenados.

— Nesse texto normativo, temos que o parlamento pediu a prisão com trânsito em julgado — disse Toffoli.

Tribunal do júri

Em seu voto, o ministro antecipou a discussão de outro processo que ainda será analisado pelo STF em data ainda não marcada: se condenados pelo tribunal do júri, em que são julgados crimes contra a vida como homicídio, podem ser presos de imediato. Nesse caso, ele disse ser a favor da prisão.

Outro que mudou de posição foi Gilmar Mendes. Em 2016, foi a favor da prisão na segunda instância, mas já vinha indicando que votaria diferente. O ministro argumentou que o entendimento foi desvirtuado:

— Decidiu-se (em 2016) que a execução da pena após condenação em segunda instância seria possível, mas não imperativa.

Cármen Lúcia, que votou a favor da segunda instância, disse que, sem a certeza da imposição da pena, impera a impunidade, sobretudo para os réus ricos que podem pagar advogados para estender o processo até a prescrição. Já Celso de Mello rebateu, dizendo que não há problema em se fazer uso de recursos “se estão previstos na lei”:

— Ainda que seja um problema, este não é do Judiciário, ou da advocacia: este é um problema da lei.

Os argumentos dos votos dos 11 ministros

Cármen Lúcia

Para a ministra, que votou pela prisão após segunda instância, a maior possibilidade de recursos aumenta as chances de prescrição. No voto, enfatizou que a eficácia do direito penal parte da certeza do cumprimento das penas e que, sem ela, impera a impunidade. Defendeu que o benefício não favorece os mais pobres, mas quem tem condição de contratar advogados e recorrer indefinidamente.

Luís Roberto Barroso

Sustentou que o cumprimento da pena apenas após o trânsito em julgado contribui para a impunidade ao incentivar a interposição de recursos protelatórios. “Nada disso estaria acontecendo se os processos demorassem o que têm que demorar”, disse. Destacou que o índice de encarceramento e de prisões provisórias diminuiu após o STF mudar o entendimento sobre a prisão após a segunda instância.

Dias Toffoli

Considerou inconstitucional a prisão após segunda instância e que não há incompatibilidade entre o artigo 5ª da Constituição (ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado) e o artigo 283 do Código de Processo Penal, que afirma que ninguém pode ser preso se não em flagrante delito ou após sentença transitada em julgada. Ressaltou que a lei representa a vontade do Congresso.

Ricardo Lewandowski

Ao votar contra a prisão após segunda instância, defendeu que a Constituição não permite margem de interpretação e criticou o alto número de prisões automáticas, o que chamou de “retrocesso jurisprudencial”. Ressaltou que a presunção de inocência é uma “salvaguarda do cidadão” diante da possibilidade de erros judiciais em um sistema com cerca de 100 milhões de ações para 17 mil juízes.

Edson Fachin

Argumentou que é inviável sustentar que toda e qualquer prisão só pode ocorrer após o último recurso. Citou a jurisprudência da Corte Interamericana e da Corte Europeia, nas quais o alcance da presunção de inocência é delimitado e, entre seus direitos, não está ser preso só após o trânsito em julgado. “O tratamento processual do acusado não se confunde com a possibilidade de se realizar sua prisão”.

Celso de Mello

Ao defender o cumprimento da pena apenas após o trânsito em julgado, sustentou que não há impedimento para que investigados sejam detidos antes da condenação, desde que a prisão antecipada esteja sustentada, e citou a previsão de prisão em flagrante, temporária e preventiva. Rebateu críticas de que há excesso de recursos: “Este não é um problema do Judiciário, é um problema da lei”.

Luiz Fux

Votou pela possibilidade de execução provisória da pena sob o argumento de que o princípio da presunção de inocência não tem vinculação com a prisão. “À medida que o processo vai tramitando, essa presunção de inocência vai sendo mitigada. Há uma gradação”, disse. Destacou ainda que as instâncias superiores (STF e STJ) não analisam mais a autoria e a materialidade do crime.

Alexandre de Moraes

Considerou que cabe às chamadas instâncias ordinárias (primeiro e segundo graus) o exame dos fatos e das provas e que, por isso, a condenação em segunda instância esgota a análise probatória e afasta o princípio da presunção de inocência. “As instâncias ordinárias não podem ser transformadas em meros juízos de passagem sem qualquer efetividade de suas decisões penais”, enfatizou.

Gilmar Mendes

Ao votar contra a prisão após a segunda instância, explicou que mudou de posição por avaliar que houve “desvirtuamento” da decisão do Supremo de 2016 sobre o tema pelas instâncias inferiores, que passaram a adotar a medida como regra. “Decidiu-se que a execução da pena após condenação em segunda instância seria possível, mas não imperativa”, criticou o ministro.

Rosa Weber

Argumentou que a Constituição define expressamente como prazo para tornar o réu culpado o trânsito em julgado e que o STF é o guardião do texto constitucional, não seu autor: “Goste eu pessoalmente ou não, esta é a escolha político civilizatória manifestada pelo poder constituinte. Não reconhecê-la importa reescrevera Constituição para que ela espelhe o que gostaríamos que ela dissesse”.

Marco Aurélio Mello

Para o relator, a Constituição “não abre campo a controvérsias semânticas” e as únicas exceções para execução provisória da pena devem ser os casos de prisão preventiva previstos no Código Penal. O ministro também citou no voto a superlotação dos presídios e a alta proporção de presos provisórios. “Inverte-se a ordem natural para prender e, depois, investigar”, criticou.