O Globo, n. 31504, 08/11/2019. País, p. 6

Lula pede liberdade e articula estratégia política
Sérgio Roxo
Gustavo Schimitt
Carolina Brígido



A defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva vai pedir hoje sua imediata liberdade à 12ª Vara de Execuções Penais (VEP) de Curitiba. Caberá à juíza Carolina Lebbos autorizar a soltura do petista e de outros presos na mesma situação, como o ex-ministro José Dirceu.

A decisão, no entanto, não é automática. O juiz de execução pode ainda decretar prisão preventiva do petista, se assim for pedido pelo Ministério Público e se considerar que existem os requisitos previstos em lei para isso — como, por exemplo, periculosidade do réu e risco de fuga. Não há prazo definido em lei para que ele se manifeste.

Em nota, a força-tarefa da Lava-Jato de Curitiba afirmou que “a decisão do Supremo deve ser respeitada, mas, como todo ato judicial, pode ser objeto de debate e discussão”, acrescentando que foram cinco votos divergentes e que a decisão contra a prisão em segunda instância “está em dissonância com o sentimento de repúdio à impunidade”.

Caso Lula seja solto hoje, ele terá ficado 580 dias na cadeia. Nas conversas que manteve nas semanas que antecederam a decisão de ontem do STF, Lula deixou claro aos seus aliados que, ao ganhar a liberdade, dois pontos vão marcar a sua atuação política: não fará inflexão ao centro nem empunhará a bandeira de deslegitimar o governo do presidente Jair Bolsonaro, como em eventual campanha por impeachment.

Nova oposição

Lula planeja viajar o país e tentar fortalecer a oposição ao governo. Também está previsto um giro internacional para se encontrar com personalidades que se manifestaram contra a sua prisão. Mas o primeiro ato do petista ao ser libertado será em Curitiba, em frente à Polícia Federal. O ex-presidente quer prestar uma homenagem aos simpatizantes que ficaram em vigília no local durante um ano e sete meses. A expectativa é que também ocorra um comício em São Paulo ou São Bernardo do Campo.

— Ao sair daqui, ele está querendo preparar um grande pronunciamento à nação — afirmou João Paulo Rodrigues, da coordenação nacional do MST, depois de visitar o petista em sua cela na Polícia Federal do Paraná, na tarde ontem.

A possibilidade de adotar um caminho político de centro chegou a ser discutida por petistas próximos a Lula. Com Bolsonaro seguindo por uma linha que os dirigentes do partido classificam como de extrema-direita, uma inflexão ideológica poderia ajudar o PT a recuperar o terreno perdido na sociedade. Mas, após debates, a conclusão foi que a legenda enfrenta rejeição muito mais pelas denúncias de corrupção e pela acusação de que as medidas econômicas do governo Dilma Rousseff quebraram o país do que propriamente por questões ideológicas.

— O Lula me falou: avisa lá para os sem-terra que eu vou sair mais à esquerda do que eu entrei — disse Rodrigues.

A recuperação da imagem do PT se dará, na visão dos dirigentes partidários, aos poucos, impulsionada pelo desgaste de Bolsonaro. Na estratégia traçada, Lula pode impulsionar esse sentimento ao frisar em seus discursos as consequências para a população das medidas que vêm sendo adotadas, principalmente na área econômica. Um antigo aliado destaca a “capacidade de Lula de explicar de maneira simples um assunto complexo”. Esse mesmo aliado aposta que Lula evitará entrar em bate-bocas com o atual presidente.

Moro na mira

Esses embates poderiam impulsionar um antipetismo e promover um reagrupamento do campo político de Bolsonaro, que vem se dividindo desde o início do mandato. Mesmo com o desgaste do governo, Lula e seus aliados não entendem que exista clima para mobilizar a sociedade para abreviar o mandato do atual presidente por meio de um impeachment. O PT tem 54 dos 513 deputados.

A mesma lógica vale para a decisão do partido de não tentar no momento levantar bandeira por mudanças na Lei da Ficha Limpa, o que permitiria a Lula recuperar os seus direitos políticos e se candidatara presidente em 2022. A decisão de ontem do STF não mexeu nisso.

O caminho visto pelos petistas como mais possível para que Lula recupere o direito de se candidatar está no julgamento da suspeição do então juiz Sergio Moro. Assim, mesmo em liberdade, o ex-presidente manterá o discurso de que os processos contra ele são resultado de perseguição política para pressionar o Supremo a colocar em julgamento o habeas corpus que questiona a atuação do ex-magistrado na condução do processo do tríplex do Guarujá.

Mas, apesar de animar o partido, há gente no PT mais cuidadosa. Um deputado federal influente diz que parte da direção se ilude achando que basta Lula sair da cadeia para que todos os integrantes do partido se resolvam. O partido precisa, segundo esse parlamentar, definir a sua tática política e eleitoral e ter claro que ainda enfrenta resistência na sociedade.

Antes de eventualmente soltar o ex-presidente, a VEP ainda pode solicitar a manifestação do Ministério Público Federal (MPF) e da Polícia Federal sobre o caso, e até mesmo acerca da logística de uma saída de Curitiba.

— Uma vez que existe um juiz de execução penal, cabe a este tomar a decisão sobre a necessidade de liberação do condenado. A defesa faz o pedido e o juiz o aprecia levando em consideração a decisão do STF. Não há prazo definido em lei , mas a urgência das questões discutidas exige resposta rápida — diz o doutor em Direito Penal pela USP Conrado Gontijo.

O professor de Direito Penal da USP Gustavo Badaró, por sua vez, entende que o pedido da defesa deve ser feito diretamente ao Tribunal Regional Federal da 4ª (TRF-4), que foi quem manteve a condenação do ex-presidente no caso do tríplex do Guarujá e deu a ordem para a execução de sua prisão.

O ex-presidente vinha evitando nos últimos dias falar diretamente sobre a possibilidade de liberdade para não correr o risco de se frustrar. Mesmo assim, deixou transparecer algumas estratégias e chegou pedir que as suas falas em entrevistas na cadeia fossem analisar para saber se o tom estava adequado.

Apoio da Argentina

Lula deve ajudar o PT atentar viabilizar candidaturas para as eleições municipais do ano que vem. O partido tem enfrentado dificuldade para lançar nomes com boas chances em cidades importantes. A expectativa é que o ex-presidente seja um cabo eleitoral ativo. Dentro da linha de ação definida, os aliados de Lula entendem que será necessário recuperar o eleitora dopo breque aderiu ao bolsonarismo.

Ontem à noite, o presidente eleito da Argentina, Alberto Fernández, se comunicou com dirigentes do PT para expressar sua satisfação pela decisão do STF.

(Colaborou Janaina Figueiredo)

Perguntas e respostas

Quantos presos poderão ser soltos com a decisão do STF?

Atualmente, o Brasil tem cerca de 845 mil pessoas presas. Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) informou em outubro, a decisão do STF poderá colocar em liberdade 4.895 presos — aqueles que estão na cadeia por causa de uma decisão de um tribunal de segunda instância. O ex-presidente Lula é um deles.

A maior parcela (354 mil) é de presos de forma preventiva, que ainda não tiveram uma sentença da Justiça. Outros 192 mil têm uma condenação apenas pela primeira instância. Os que estão presos em cumprimento de uma pena já com recursos esgotados somam 294 mil.

Todos os quase cinco mil presos pela condenação em segunda instância serão imediatamente soltos?

Não. O Supremo decidiu que um réu só pode ser preso em virtude da condenação judicial quando todos os recursos possíveis forem esgotados. Mas a decisão não afeta as prisões preventivas, ou cautelares, que continuam a existir mediante a decisão de um juiz. No caso dos presos potencialmente beneficiados pela decisão de ontem, cada defesa deverá pedir a libertação de seu cliente. E o pedido será analisado pelo juiz responsável pelo caso. Ao analisar o pedido, e se provocado, o juiz poderá determinar a prisão preventiva do réu, se enxergar que está atendido algum dos critérios legais, como ameaça à ordem pública, alta periculosidade do réu ou risco de fuga, por exemplo.

Quando o ex-presidente Lula poderá ser solto?

A defesa do ex-presidente Lula deve pedir ainda hoje a sua libertação. O mais provável é que a solicitação seja feita à Vara de Execuções Penais (VEP), que cuida do cumprimento da pena do petista. No caso de Lula, a responsável é a juíza Carolina Lebbos, da 12ª Vara de Execuções Penais do Paraná. A magistrada não tem prazo previsto em lei para responder.

Qual deve ser a estratégia jurídica da defesa de Lula após deixar a prisão?

No caso do tríplex do Guarujá, Lula já foi condenado pela 13ª Vara Federal Criminal (primeira instância), pelo TRF-4 (a segunda instância) e pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). No caso do sítio de Atibaia ,foi condenado em primeira instância. Ele também é réu no processo sobre o imóvel do Instituto Lula e responde a outros seis processos. A defesa do petista Lula aguarda ainda o julgamento do pedido de suspeição do ex-juiz Sergio Moro, que atuou nos dois primeiros processos do petista. Se o STF deferir o pedido de suspeição, as condenações nos casos do tríplex e do sítio podem ser anuladas.

Se for solto, Lula poderá ser preso novamente? Quando?

Não se pode prever por enquanto. Seu processo em estágio mais avançado é o do tríplex do Guarujá, no qual ele já foi condenado pelo STJ. Se o Supremo Tribunal Federal, quando julgar seu último recurso, mantiver a condenação, ele poderá voltar para a cadeia.

Quais foram as mudanças de posição do STF sobre o momento da prisão de um réu no Brasil?

O artigo 5º da Constituição de 1988 diz que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Até 2009, diferentes juízes e tribunais decidiam conforme a própria interpretação o momento em que uma pessoa poderia ser presa. Naquele ano, o Supremo definiu uma regra geral pela primeira vez. Foi decidido que uma pessoa só seria presa — à exceção das prisões preventivas — quando se esgotassem todos os recursos. O STF voltaria ao tema em fevereiro de 2016, e mudou o entendimento, permitindo que tribunais de segunda instância determinassem a prisão de condenados. Em outubro de 2016, o plenário do Supremo voltou a julgar a questão. E confirmou o entendimento de permitir a prisão em segunda instância. Em abril de 2018, ao julgar o pedido de habeas corpus do ex-presidente Lula, nova votação sobre o tema. Mais uma vez, a jurisprudência de permitir ar a execução provisória de pena se manteve. Ontem, o Supremo Tribunal Federal reanalisou a questão, agora mudando mais uma vez, passando a exigir o trânsito em julgado do processo para que o réu seja preso.

É possível que condenados por homicídio e outros crimes violentos sejam soltos?

Em tese, a decisão alcança todos os réus com recursos ainda pendentes. O mais provável, porém, é que os presos por crimes de grave violência, como os homicidas, tenham a prisão preventiva decretada pelo juiz responsável pelo caso.