Título: A logística de Sepetiba
Autor: Carlos Lessa*
Fonte: Jornal do Brasil, 10/04/2005, Economia & Negócios / Além do fato, p. A18

O porto é o nó crítico da rede logística. Articula o rodo-ferroviário com o hidroviário. No Brasil, 90% dos fluxos no exterior transitam pelos portos. O sucesso mede-se pelo nível, pela intensidade e pela qualidade dos serviços que presta. A atividade portuária se corporifica nos serviços inter-articulados em seu recinto. No cais, o navio tem custos que crescem exponencialmente quando uma operação portuária é precária. A operação portuária administra fluxos pelos seus espaços, numa espécie de ¿xadrez logístico¿. Não pode perder tempo entre os lances neste tabuleiro. Fora do recinto, o porto tem que estar coordenado com um sistema de entregas e recepções, de volumes e cargas específicas. O porto tem que estar preocupado em gerir tempo-custo e aperfeiçoar o trade-off custo-serviço. A preocupação com a redução dos custos de transação (eficiência nas instituições) tem que ser permanente na operação portuária. No passado, o porto foi local de armazenagem. Agora, tem de ser de trânsito de mercadorias.

A logística projeta-se mais além do perímetro do porto. A sua plataforma abriga uma coleção de usuários que coordenam o fluxo de cargas. Cada porto pode se articular com distritos industriais e comerciais, estações aduaneiras, terminais alfandegados, além de, obrigatoriamente, manter desimpedidas suas portas de recepção rodo-ferroviárias. Alguns, sofisticados, têm portas aeroviárias. Desnecessário dizer que acontecem transposições no porto, entre embarcações.

Pela embarcação, a minimização do tempo de permanência reduz seus custos fixos. Em simultâneo, a evolução do desenho dos navios é outra chave para a redução do frete. O porto, que manipula cargas de grandes embarcações com mínimo de tempos mortos, atrai os armadores e operadores portuários. Este tipo de porto é chamado de hub-port, ou porto concentrador. Cada um destes, e são poucos no mundo (Cingapura, Hong Kong, Rotterdam, Gioia Tauro são alguns exemplos), recebe cargas menores de um conjunto de portos (feeders), que por sua vez alimentam por desdobramento de grandes cargas, o retrofluxo do hub com o feeder.

Ao longo dos anos 1960 e 1970, o Brasil realizou uma inovação logística com granel sólido. A CVRD, inicialmente na linha de Vitória-Minas e depois pela de Carajás, operando terminais especializados em Tubarão (ES) e Itaqui (MA) aperfeiçoou a intermodalidade ferro-portuária especializada em minério. A partir das qualidades do minério brasileiro e da eficácia de sua operação logística, coloca com vantagem nos mercados do Extremo Oriente. O minério de ferro australiano chega ao Japão a custo mais alto que o minério da Vale. Esta história de sucesso aconteceu quando a empresa era propriedade estatal. É tão importante que torna a Vale não uma empresa de mineração, mas uma empresa logística extremamente eficiente.

É a única história de brilho logístico. Em tudo o mais, o Brasil é atrasado. Não há sofisticação na intermodalidade, e a atrofia fiscal interrompeu os investimentos em infra-estrutura de transportes e sub-orçamentou o gasto mínimo de manutenção. O Banco Mundial estima que o custo logístico brasileiro seja de 17% do valor da mercadoria média, enquanto nos EUA são 10%. Aqui está a principal componente do custo Brasil. Além do discurso dos exportadores, que vêem na logística um obstáculo, cabe ter presente que a população urbana brasileira (80%) sustenta esta componente corrosiva do abastecimento interno. O Brasil, segundo avaliação do World Economic Forum, foi colocado em 52º lugar em altos custos logísticos.

Sepetiba é, potencialmente, o hub-port do Atlântico Sul.

No dia 26 de março do corrente, o JB anunciou que o grupo holandês P&O Nedlloyd, um dos maiores transportadores globais, irá investir US$ 20 milhões para densificar suas rotas até a Costa Leste dos EUA. Para isto, o grupo passa a operar três navios de 2,5 mil TEUs (medida de capacidade de carga conteinerizada). Em 2004, este armador contava com apenas um navio nesta rota. Outro armador, CNA-CGM, em coordenação com a P&O, irá operar outros dois navios de 2,5 mil TEUs. Estará disponível, inclusive, a capacidade para cargas refrigeradas.

Sepetiba é chave deste esquema. Nos EUA, estes navios irão servir aos portos de Charleston, Norfolk e Nova Iorque. Estes armadores pretendem um market-share imediato de 15% a 20% nesta rota. A CVRD, há algumas semanas, anunciou a construção de silos para a exportação de grãos (soja e milho). Estarão operando em outubro deste ano.

Sepetiba está localizado no município de Itaguaí, RJ, na Baía de Sepetiba/Ilha Grande. A sul e leste da Ilha da Madeira, sua área de influência, num raio de 500 km, cobre mais de 60% do PIB brasileiro e serve diretamente a mais de 30% da população nacional. Ser porto de transbordo de grandes cargueiros é uma experiência estabilizada há mais dois anos.

Mensalmente, atraca um navio da maior armadora do mundo, a Maersk Sealand. Atraca em Sepetiba o navio L-class, com 266 metros de comprimento, calado de até 14 metros e que transporta 4 mil TEUs. Hoje, nas ligações Norte-Norte já estão operando porta-contêineres com 8 mil TEUs.

A mão de Deus abençoou Sepetiba. Dispõe de águas profundas e abrigadas. Dispensa investimentos em molhes e enrocamentos. Tem uma ampla bacia de evolução que pode expandir-se para leste e oeste. Não é estuarino, portanto não necessita de contínuas dragagens. Hoje recebe sedimentos pelo Canal de São Francisco. Entretanto, este Canal e o Rio Guandu permitem, com pequenos investimentos, instalar quatro terminais fluviais para barcaças, fazendo a ligação do porto, por hidrovia, com o Distrito Industrial de Santa Cruz. Isto possibilita a descarga, por um dos bordos, do navio atracado diretamente para barcaças, enquanto o outro bordo utiliza a plataforma portuária. Esta é uma fantástica vantagem estratégica.

Não é difícil articular este porto com a espetacular pista aérea e com o hangar de zepelins, disponíveis na Base Aérea de Santa Cruz. O cais mede hoje 810 metros, tendo a área portuária de 400 mil m². Tem equipamentos correspondentes a seus três berços. O calado atual é 14,5 metros no cais e o canal de acesso tem 18 metros. Com um investimento relativamente robusto, US$ 200 milhões, pode chegar a 22 metros.

Numa visão logística, a Baixada Fluminense, o médio Paraíba do Sul e o eixo de Juiz de Fora fazem parte do retroporto mediato de Sepetiba. A movimentação acumulada do porto em 2004 atingiu 25,4 milhões toneladas. Freqüentaram seus berços e terminais 723 navios. Em volume, a principal movimentação foi de minério de ferro, seguida de carvão metalúrgico e térmico. O terminal de contêineres movimentou 2,5 milhões de toneladas, com a presença de 444 navios. Apesar da crescente movimentação de produtos siderúrgicos, a componente mais dinâmica tem sido os contêineres.

A consolidação deste hub depende do Ferro-anel da Grande São Paulo e do Rodo-anel do Grande Rio. O Ferro-anel é fundamental para melhorar o acesso ao porto de Santos. Seu tramo norte abre acesso privilegiado a Sepetiba. A ligação Campinas - Jacareí (tramo norte) permitirá que os grãos do Centro-Oeste se desloquem por via ferroviária de bitola larga até seu embarque em Sepetiba. O Arco Rodoviário do Rio de Janeiro coincide com o traçado da antiga RJ-109, e promoverá a ligação direta do porto de Sepetiba com a BR-101 Sul (Rio-Santos), a BR-116 Sul (Via Dutra) e a BR-040 (Rio - Juiz de Fora ). O Arco deverá interligar a BR-116 Norte (Rio-Bahia). São 78 km para agilizar a movimentação rodoviária. Beneficia diretamente uma população de 4 milhões de pessoas e descongestiona a malha do município do Rio de Janeiro.

É importante aprofundar para 19,5 metros o canal de acesso ao porto. Isto exige a dragagem de 150 mil m³. No futuro, será necessário alargá-lo para 200 metros de largura, o que deverá movimentar mais de 600 mil m³ de material.

Haverá um boom industrial associado ao porto, tão pronto a economia brasileira retome o desenvolvimento. As indústrias hoje coladas são: Valesul Alumínio, Casa da Moeda, Nuclep, Cosigua, Latasa etc. Com o olhar em Sepetiba estão plantas automobilísticas: Volkswagen, Peugeot-Citroën e Mercedes-Benz. Além dos armadores já citados, são clientes a Docenave, a Crowley, K-Line, Sanave, Zim, Niver Lines e Maruba. O Grupo Gerdau anunciou significativa ampliação da Cosigua; a CSN, a intenção firme de instalar uma usina greenfield; e a Vale, associada à Thyssen, promete outra planta siderúrgica. Além da Vale, a CSN irá escoar minério da Casa de Pedra. O grupo Unipar inclina-se por um complexo petroquímico no retroporto de Sepetiba. Uma refinaria programada para processar óleo pesado de Marlin é o mais rentável projeto da Petrobras. Têm sido descobertas novas e significativas reservas de gás natural na Bacia de Santos (os blocos BS-400 e BS-500 (Petrobras- Costa fluminense) bem como o BS-14 (Wintershall - Costa fluminense). Estas descobertas, associadas às atuais disponibilidades de gás e petróleo da Bacia de Campos, confirmam o retroporto de Itaguaí como a grande base para a expansão petroquímica. Os investimentos estão estimados em mais de US$ 3 bilhões.

O porto de Sepetiba parece obra de igreja. A primeira sugestão surgiu no Governo Carlos Lacerda, em 1963. O Governo Geisel tomou a decisão de ali instalar um terminal de carvão, tendo em vista a nova usina da CSN. As construções começaram em 1975 e o porto somente veio a ser inaugurado em 1982. A partir de 1996, o BNDES começou a apoiar o projeto. Houve continuidade na dragagem do canal de acesso e foi implantado um cais contínuo de 540 metros, dois berços e um cais descontínuo de 270 metros, destinado à movimentação de granéis agrícolas, e um retroporto de 200 mil m². Posteriormente, a Sepetiba-Tecon recebeu apoio do BNDES para aperfeiçoar o terminal. No governo FHC anunciou-se a construção do arco-rodoviário. Em Sepetiba se pensa grande: o projeto prevê a ampliação de novos 13 berços.

Por que esta lentidão? Fui o coordenador do Plano Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro ¿ primeira administração de César Maia, em 1994/95. Para o Brasil e para a região metropolitana era óbvia a importância do porto. Conversei com os dirigentes estaduais, mas não estavam interessados. Apenas o secretário de Meio-Ambiente promoveu um estudo preliminar de impacto ambiental. Aliás, sobre a Baía de Sepetiba pesa o ameaçador passivo ambiental de resíduos da Metalúrgica Ingá.

A Companhia Docas não manifestou interesse em desenvolver em Sepetiba a carga geral. As forças sindicais ligadas ao velho porto do Rio de Janeiro vetavam a discussão. Concluído o Plano Estratégico, coordenei o chamado Grupo de Sepetiba, a partir de orientação de Rafael de Almeida Magalhães, escolhido por FHC para dinamizar os projetos do Rio. Adesões importantes foram as da Firjan e da Associação Comercial. A representação parlamentar do Rio também não tinha interesse na questão. Já em São Paulo, chegou a surgir um embrião de bancada contra Sepetiba.

Hoje, há consenso federal na prioridade para Sepetiba. Porém, com as restrições fiscais, os projetos irão para o espaço a ser percorridos pelas PPPs. A novela promete outros capítulos.

Professor da UFRJ e ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (carlos-lessa@uol.com.br)