O Globo, n. 31485, 20/10/2019. País, p. 12

Prender ou não prender

Entrevista: Carlos Velloso


Na próxima quartafeira, o Supremo Tribunal Federal (STF) retoma o julgamento da ação que pode mais uma vez mudar o entendimento sobre a prisão após condenação em segunda instância. Quando foi ministro da Corte, entre 1990 e 2006, Carlos Velloso votou pela possibilidade de prisão nessa situação. Durante muito tempo, o STF teve esse entendimento até mudar em 2009. Em 2016, houve nova alteração, e a prisão voltou a ser admitida. Hoje comandando um escritório de advogados, Velloso sustenta a mesma posição —ainda que isso contrarie o interesse de muitos de seus clientes.

Para o ministro aposentado, se o STF mudar a regra agora, vai beneficiar criminosos e fortalecer a sensação de impunidade no país. Já o ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Gilson Dipp diz que o STF cometeu “tremendo erro” ao permitir em 2016 a prisão após condenação em segunda instância, sem explicitar os termos da decisão. Dipp entende que a Constituição é clara ao prever que ninguém é culpado até o trânsito em julgado, ou seja, quando não há mais possibilidade de recorrer.

O ex-ministro do STJ sustenta que, dependendo das condições, a prisão até pode ser efetuada de forma parecida com o que ocorre hoje em casos de prisão preventiva. Mas, para ele, os sucessivos julgamentos do STF sobre o tema sem firmar uma posição clara e inequívoca trazem insegurança jurídica.

O senhor é a favor da prisão de réus condenados por tribunal de segunda instância?

Eu sempre entendi, até quando estava na ativa, que a prisão após a confirmação da sentença condenatória pela segunda instância é perfeitamente cabível.

A prisão antecipada fere o direito de defesa?

Eu acho que não. As normas constitucionais não podem ser interpretadas isoladamente. A Constituição assegura a presunção de inocência. As leis fundamentais dos países do mundo civilizado procedem da mesma forma. Isto não é a mesma coisa de impedir a prisão. As normas constitucionais interpretam-se no seu conjunto, não se interpreta a Constituição em tiras. O que a Constituição garante é o devido processo legal, que se compõe da ampla defesa e dos recursos a ela inerente. Ela garante o duplo grau de jurisdição na forma da lei processual.

Não seria importante aguardar em liberdade os recursos depois da segunda instância, ao STJ e ao STF?

Os recursos ao STF e ao STJ não têm efeito suspensivo (da condenação). Após a segunda instância, não se examina a justiça da decisão, ou seja, não se examinam provas, não se examinam os fatos. Os recursos às instâncias superiores são jurídicos. A regra é o início da execução da pena após a segunda instância. A exceção é a medida cautelar para efeito suspensivo, sem esperar o julgamento final. Também é possível ficar em liberdade aguardando o julgamento, em alguns casos.

Se o STF derrubar as prisões em segunda instância, vai favorecer criminosos de colarinho branco?

É evidente. É o caso, por exemplo, dos assassinos dos fiscais do trabalho em Unaí (MG), que estão em liberdade, apesar de condenados em segunda instância. Estão aí recorrendo. Agora, como ficam as famílias das vítimas? A prisão em segundo grau tem o sentido também de proteção à vítima. Os réus estão aí há 16 anos nos insultando. É uma liberdade que insulta a família das vítimas e também o Estado brasileiro, porque foram assassinados homens a seu serviço. Eles têm bons advogados para mantê-los soltos por uma eternidade.

Existe uma avaliação segundo a qual as prisões em segunda instância são responsáveis por lotar as prisões. O senhor concorda?

A causa das prisões lotadas são as prisões provisórias. As cadeias estão cheias. A prisão provisória me parece horrorosa porque confere ao juiz o poder enorme de decretar prisão com base em indícios e suposições. É risível, na minha opinião. Isso é que poderia ser corrigido. As cadeias estão cheias de prisões provisórias com base em indícios, sem condenações. A prisão do ex-presidente Michel Temer foi absurda, e esse absurdo se repete nesse mundo de Deus. Isso sim precisava ser examinado, precisava ser discutido. Agora, a prisão depois de uma sentença de primeiro grau e de um acórdão de um tribunal é admissível porque os recursos a partir dali não têm efeito suspensivo.

O STF autorizava as prisões em segunda instância até 2009. Depois mudou a regra. Essas oscilações na jurisprudência prejudicam?

Isso prejudica a segurança jurídica e denota instabilidade.

O senhor acha que o STF deveria julgar esse tema de novo agora?

Eu acho que não. O tribunal tem uma jurisprudência que deveria ser mantida. Foi o plenário do Supremo que julgou em 2016. Por que rever o assunto novamente três anos depois?

Para o senhor, a decisão do STF de julgar esse tema agora pode ter alguma relação com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, preso depois de condenado por um tribunal de segunda instância?

Não me manifesto sobre isso. Parto do pressuposto de que o tribunal está agindo corretamente, de boa-fé.

O ministro Gilmar Mendes votou de uma forma em 2009. Em 2016, mudou de opinião. Agora, já deu indícios de que mudará novamente o voto. Esse comportamento é esperado de um ministro?

Eu só respondo por mim. Essa opinião que estou manifestando agora é a mesma que eu manifestava no plenário do STF. Nunca encontrei motivo para me fazer mudar de ideia. Agora, não sou censor de nenhum juiz do meu país. Parto do pressuposto de que todos agem com bons propósitos.