O Globo, n.31.586, 29/01/2020. Mundo. p.23

Plano sem paz


Com o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, ao seu lado, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, divulgou o seu muito alardeado plano de paz para o Oriente Médio na tarde de ontem,desenvolvido sob a supervisão do seu genro e conselheiro, Jared Kushner, ao longo de mais de dois anos. O plano, favorável aos pleitos israelenses, reduz substancialmente o território de um futuro Estado palestino em relação à Linha Verde, a fronteira anterior à Guerra dos Seis Dias, em 1967, quando Israel ocupou a Cisjordânia e a Faixa de Gaza.

O plano de Trump garantiria a Israel o controle de Jerusalém, que seria, segundo o presidente, “a capital indivisível” do Estado judeu. Apesar disso, prevê uma capital palestina em “áreas” do setor oriental de Jerusalém. Ainda não está claro o que são essas “áreas”, mas Netanyahu indicou tratar-se de Abu Dis, uma pequena aldeia da Cisjordânia contígua — mas fora — de Jerusalém Oriental, onde estão situados vários escritórios palestinos relacionados à cidade.

O plano não prevê a desocupação de nenhum dos assentamentos israelenses na Cisjordânia, que são atualmente considerados o principal obstáculo à paz entre os dois lados. O acordo inclui a continuidade da presença militar de Israel no Vale do Jordão, uma área agrícola e estratégica da Cisjordânia contígua à Jordânia. O premier de Israel, que falou após Trump, confirmou que, sob o plano, Washington reconhecerá os assentamentos, onde vivem mais de 400 mil israelenses, como parte de Israel.

PAÍS FRACIONADO

O plano também prevê que um futuro Estado palestino seria fracionado territorialmente, sem Forças Armadas. Além disso, reconheceria Israel, onde vivem 1,8 milhão de árabes, como um Estado judeu. Segundo o proposto, refugiados palestinos perderiam esse status e não teriam direito a retornar às áreas em Israel de onde partiram ou foram expulsos após as guerras de 1948 e 1967.

Tal como proposto, o plano de Trump se distancia substancialmente de todos os que foram negociados pelos presidentes americanos antes dele desde os anos 1990, quandos os Acordos de Oslo, nunca integralmente implementados, abriram caminho para o que seria a criação de um Estado palestino. As negociações estão paradas desde 2014.

O plano foi apresentado na Casa Branca, perante uma plateia que aplaudia Trump entusiasticamente. Em um aceno à sua própria candidatura à reeleição — os evangélicos, base importante do eleitorado republicano, são fortes apoiadores de Israel —Trump se gabou:

—Eu fiz muito por Israel — disse ele. — Nossa aliança com o Estado de Israel nunca foi mais forte do que é hoje.

Os líderes palestinos, que consideram que Trump não é um mediador confiável entre

os dois lados, já deram sinais de que se oporão a todos os elementos do plano, mesmo com a promessa de recompensas econômicas de US$ 50 bilhões ou mais que o governo Trump diz que pode oferecer.

Embora o plano não tenha sido discutido com os palestinos, Trump insistiu que seria bom para eles e, em seu discurso, fez um chamado ao presidente da Autoridade Nacional Palestina (ANP), Mahmoud Abbas.

— Minha visão apresenta uma oportunidade de ganho para ambos os lados, uma solução realista de dois Estados — disse, ressaltando que “pode ser a última oportunidade” de os palestinos conseguirem um país independente.

Netanyahu destacou que, pelo plano, Israel está oferecendo aos palestinos “no final do processo, soberania condicional e limitada”. Para o ex-ministro israelense Yossi Beilin, figura crucial nos Acordos de Olso nos anos 1990, o plano de paz apresentado por Trump é “totalmente unilateral”.

— É inacreditável propor um plano assim sem conversar com os palestinos — criticou em entrevista à CNN.

ÁRABES DIVIDIDOS

Muitos analistas destacam que um aspecto relevante do plano é seu efeito potencial nas eleições de Israel em 2 de março, que provavelmente decidirão o destino de Netanyahu, às voltas com processos por corrupção. Ontem, ele abriu mão de sua imunidade, pouco antes da votação no Parlamento que provavelmente iria determinar a medida. Outro efeito seria o desvio da atenção do processo de impeachment de Trump no Senado.

Segundo o embaixador palestino no Reino Unido, o plano de Trump dá luz verde a Israel para estabelecer um Estado de apartheid.

— O presidente Trump acabou de matar as perspectivas de uma solução de dois Estados negociada — afirmou Husam Zomlot.

Em, Ramallah, Abbas disse que o plano é “uma conspiração” que “não passará”, porque os “direitos dos palestinos não estão à venda”. A Jordânia também rejeitou o plano, alegando apoiar apenas uma solução baseada nas fronteiras de 1967.

O Egito, porém, pediu que os dois lados examinem o plano com cuidado e os Emirados Árabes e a Arábia Saudita disseram que ele pode ser a base para a retomada de negociações entre israelenses e palestinos . Os governos dos três países têm sido fortes aliados de Trump. Já a Turquia disse que o plano representaria “um roubo” de terras palestinas.

Fronteiras

Cerca de 30% da Cisjordânia, incluindo a parte a oeste do Rio Jordão, serão de Israel, que manterá controle das fronteiras do território ocupado na guerra de 1967. O Estado palestino será um arquipélago dentro de Israel. Um túnel ligará a Cisjordânia a Gaza. Além disso, Israel cederá duas áreas no Deserto do Negev, perto da fronteira entre Gaza e o Egito, ao Estado palestino, para indústrias e agropecuária — o que faria, segundo Trump, com que o território hoje sob controle palestino dobrasse de tamanho.

Jerusalém

Trump disse que Jerusalém será “a capital indivisível” de Israel, mas que Jerusalém Oriental — ocupada por Israel desde 1967 e onde vivem 327 mil árabes e 214 mil judeus — também abrigará a capital palestina, antiga exigência dos palestinos. Na verdade, porém, a capital ficará em bairros árabes a norte e leste de Jerusalém — Kfar Aqab, Abu Dis e metade de Shuafat, onde há um campo de refugiados —, além do muro construído por Israel para separar-se das áreas da Cisjordânia onde vivem os palestinos.

Assentamentos

Todos os assentamentos judaicos na Cisjordânia, considerados ilegais pela ONU e pelo direito internacional, se tornarão parte de Israel. Dentre estes estão 15 isolados em território palestino, que serão enclaves israelenses, acessíveis às suas Forças Armadas. Israel deverá congelar a construção de novas colônias por quatro anos enquanto “um amplo acordo” for negociado”.

Refugiados

Os refugiados palestinos — pessoas que fugiram ou foram expulsas do que é hoje o território israelense e seus descendentes — não terão “nenhum direito de retorno ou de absorção” a Israel nem compensação. Calculados pela ONU em 5,15 milhões, eles terão a opção de viver no futuro Estado palestino, de se integrar ao país onde vivem hoje, ou então relocar-se em outros países. Mesmo se não concordarem com essas opções, perderão o estatuto de refugiados.

Segurança

O Estado palestino será desmilitarizado, sem nenhum tipo de forças armadas. As tropas de Israel não terão que deixar a Cisjordânia e decidirão quando a ocupação termina. A segurança entre o Rio Jordão e o Mediterrâneo também ficará a cargo de Israel.

Soberania

Não haverá reconhecimento imediato de um Estado palestino, que ficará dependente da aceitação do plano, de a Autoridade Nacional Palestina “parar de pagar terroristas” e da entrega das armas por parte da Jihad Islâmica e do Hamas.

Os palestinos também deverão “respeitar os direitos humanos e a liberdade religiosa”, combater a corrupção e permitir a liberdade de expressão. Caso essas condições sejam aceitas, em quatro anos um Estado-nação palestino será reconhecido.

Economia

Trump prometeu ajuda econômica de US$ 50 bilhões aos palestinos, o que, segundo disse, criaria mais de um milhão de empregos, dobraria o PIB local e reduziria o desemprego para menos de 10%.