Título: A raiz do problema
Autor: Mauro Santayana
Fonte: Jornal do Brasil, 13/04/2005, País / Coisas da Política, p. A2

Desde o princípio, além das desigualdades sociais, dois problemas têm causado as grandes crises republicanas no Brasil. Deles surgiram os golpes de estado e as insurreições armadas: a federação agrilhoada pelo poder central e a promíscua divisão dos poderes. Estudiosos afirmam que, a não ser na utopia constitucional de Montesquieu, essa distribuição de tarefas é imperfeita, e nela sempre prevalece o Poder Executivo. Mas é nessa divisão, e em sua descentralização geográfica, que se assenta a perenidade das instituições americanas. Admirá-las não é admirar o comportamento dos homens que as ocupam. Os homens são os homens. Na mesma Casa Branca, em que morou Lincoln, vive hoje George Bush. Por isso, a boa república tem de estar submetida aos checks and balances", ao equilíbrio entre os poderes e seu controle recíproco. Essa preocupação levou os redatores da Constituição dos Estados Unidos a deixar, no segundo ponto da section 6, uma proibição cautelar: a de que impede os parlamentares de ocupar cargos no Poder Executivo. Da mesma forma, ocupantes de cargos executivos não podem eleger-se para a Câmara ou o Senado. Devem licenciar-se e não podem se beneficiar de vantagens que se atribuam ao cargo, durante o período do afastamento, que será o da legislatura para a qual se eleja. Isso significa que o presidente da República não pode nomear deputados ou senadores para qualquer cargo no governo, de ministro (ali, secretário de Estado) a copeiro, a menos que o candidato esteja disposto a renunciar ao mandato.

No Brasil, essa cautela deixou de existir. Se o descuido constitucional já nos era grande problema, transformando a substituição de qualquer ministro em crise parlamentar (e isso, desde o Império), ele se agravou com a Carta de 1988, cujos dispositivos revelam dissídio entre a intenção parlamentarista dos constituintes e o texto final, de caráter presidencialista. Plebiscito posterior confirmou o sistema presidencialista, e não houve o necessário reajustamento do texto constitucional à decisão popular. Entre outras anomalias dessa hesitação, sobrou o instituto das medidas provisórias, normais no governo de gabinete e despóticas no sistema presidencialista. Trata-se de um recurso do Poder Executivo, diante da dificuldade em obter o assentimento rápido do Parlamento, a medidas reclamadas pela urgência da administração, mas foi pervertido pela vocação autoritária que a alta burocracia traz do regime militar.

Na divisão de poderes de um sistema presidencialista, as tarefas são bem claras: cabe ao Poder Legislativo criar as leis, fiscalizar a sua aplicação, elaborar e aprovar o orçamento, que deve ser impositivo, e se limitar a isso. Os parlamentares não podem indicar ministros ou quaisquer outros empregados do Poder Executivo e não devem aceitar a intromissão do Poder Executivo na formação dos órgãos diretores. Em termos coloquiais, cada um na sua. No sistema americano (tido como presidencialismo congressual, no qual a harmonia se exerce conforme a Constituição), o controle mútuo, ao dar ao presidente o direito de veto às leis, confere ao Congresso o direito de veto a certas decisões do Executivo, entre elas a da nomeação de servidores públicos, de secretários de Estado a guardas florestais.

Na promiscuidade do nosso sistema, o presidente da República fica refém da eventual maioria no Congresso na escolha do ministério. Deve dividir com os deputados e senadores os cargos executivos e, com eles, o poder. A barganha de favores e vantagens passa a ser rotineira, com os contribuintes pagando a conta.

Fala-se muito em reforma política, mas nenhum dos políticos que a reclamam se preocupa com a necessária e real independência entre os poderes, nem com o pacto federativo. Sem o respeito a essa norma republicana, continuaremos claudicando entre crises, sempre mais graves, sempre mais perigosas.