O Globo, n. 31502, 06/11/2019. Economia, p. 23

Privatização da Eletrobrás chega à Câmara
Manoel Ventura
Bruno Góes
Eliane Oliveira
Renata Vieira
Rennan Setti
Ramona Ordoñez


O presidente Jair Bolsonaro usou ontem a cerimônia que marcou 300 dias de governo para assinar o projeto de lei que autoriza e estabelece as regras da privatização da Eletrobras. No início da noite, o ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, entregou o projeto ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia. O ministro disse esperar que o Congresso dê o aval para a venda do controle da estatal até o segundo semestre de 2020. A expectativa do governo é arrecadar R$ 16,2 bilhões com a privatização, recursos já previstos no Orçamento do ano que vem.

O projeto de lei não prevê que o governo mantenha a chamada golden share ,uma ação especial daria poder de veto à União em decisões estratégicas da companhia. Isso foi feito no passado em privatizações como as de Vale, Embraer e Instituto de Resseguros do Brasil (IRB).

A privatização da maior empresa de geração e transmissão de energia elétrica do país já havia sido encaminhada ao Legislativo pelo ex-presidente Michel Temer, em 2018. Mesmo prevendo a golden share ,o texto não avançou, em meio a fortes resistências políticas. A equipe econômica, que preferiu um novo projeto, vinha dizendo nos bastidores que não faria sentido um governo liberal sugerir uma golden share.

O Supremo Tribunal Federal (STF) definiu que a venda de controle de estatais precisa do aval do Congresso. Pelas características dessa operação, o texto não poderia ser enviado junto com o projeto para acelerar as privatizações planejado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. O governo decidiu apresentar o projeto ontem para reforçar o marco de 300 dias e a agenda pós-reforma da Previdência.

O modelo de privatização prevê a emissão de novas ações a serem vendidas no mercado, resultando na redução da fatia da União. O plano é transformar a Eletrobras em uma corporação privada, sem um controlador majoritário, com o governo como acionista minoritário.

— A expectativa do governo é que esse processo de capitalização se dê no segundo semestre de 2020, tendo em vista que ele vai ter que tramitar na Câmara e no Senado. E, além disso, para que a capitalização seja realizada, diversas ações devem ser tomadas no âmbito legal e no âmbito do Tribunal de Contas da União. Ou seja, não é simples, é um processo complexo — disse o ministro, que defende a privatização como uma forma de manter a capacidade de investimentos da empresa sem aporte da União.

Modelo divide opiniões

O modelo escolhido pelo governo divide opiniões entre especialistas. Para Rodrigo Leite, especialista em energia do escritório Leite Roston Advogados, o modelo de privatização, sem golden share, torna a empresa mais atrativa para investidores. Ele também avalia que a criação de uma corporação de capital acionário pulverizado ajudará a garantir os investimentos para a segurança energética do país:

— A Eletrobras faz parte de um setor estratégico de infraestrutura, que é a base para o crescimento econômico. Privatizada, terá mais recursos para investir.

Para o ex-presidente da Eletrobras Luiz Pinguelli Rosa, professor de planejamento energético da Coppe/UFRJ, a falta de uma golden share traz risco à segurança do abastecimento de energia, já que o governo não terá instrumentos para garantir investimentos adequados às necessidades do país. Na visão dele, o governo exagera ao tentar reduzir o papel do Estado no setor.

— Não resolve tudo, mas permitiria uma intervenção estatal em casos graves, que já aconteceram no Brasil, como o apagão —disse o físico e engenheiro nuclear, referindo-se ao racionamento de energia de 2001. — Nem sempre as coisas ocorrem como se deseja. Na minha opinião, a intervenção do Estado não pode ser tratada com radicalismo. Deve ser sempre uma possibilidade e, se for necessário, deve-se assumi-la.

Roberto d’Araújo, diretor do instituto Ilumina, que é contrário à privatização da Eletrobras, concorda com Pinguelli sobre a falta da golden share.

Para ele, o governo abre mão de um instrumento importante para ceder a uma pressão do mercado sem fortalecer agências reguladoras como a Aneel. Segundo Carolina Fidalgo, especialista em Direito Público e sócia do Rennó, Penteado, Reis e Sampaio Advogados, o instrumento está em desuso no mundo, mesmo na Europa, onde foi criado:

— As golden shares foram criadas quando não existiam agências reguladoras e contratos de concessão consolidados. Hoje, esses mecanismos existem e permitem uma regulação sem que o Estado precise intervir dentro da empresa. Há, aliás, jurisprudência consolidada na Corte Europeia de Justiça questiona a golden share no que diz respeito a como ela limita indevidamente o poder dos outros sócios. Esse instrumento pode ter efeitos negativos no valor da empresa e gerar discussões sobre sua governança.

Para Ilan Arbetman, da Ativa Investimentos, o novo projeto é mais agressivo quanto ao futuro da Eletrobras do que o projeto do governo Temer. Mas ele pondera que a retirada da golden share dificulta mais a aprovação no Congresso:

— Se já víamos resistência com a proposta passada, vamos ver a margem de manobra do governo.