O Globo, n. 31486, 21/10/2019. Opinião, p. 2

Uma desastrosa eleição no Conselho de Direitos Humanos da ONU



É trágica ironia a eleição da Venezuela na semana passada para o Conselho de Direitos Humanos da ONU. O episódio diz mais sobre o fracasso da política externa dos países sul-americanos — com destaque para o Brasil — do que sobre a resiliência da cleptocracia liderada pelo ditador Nicolás Maduro em meio a uma crise humanitária e ao derretimento da economia, com o salário mínimo fixado em US$ 16 (ou R$ 67,2) mensais.

O regime venezuelano é autor de uma das mais brutais páginas da história continental. Relatório do Comissariado da ONU para os Direitos Humanos registra 6.856 mortes suspeitas de adversários, execuções extrajudiciais nos 17 meses encerrados em maio. Isso representa mais do dobro do total de assassinatos e desaparecimentos durante a ditadura de Augusto Pinochet, no Chile, de 1973 a 1990. Quinta-feira passada foi encontrado o corpo carbonizado de Edmundo Rada, líder regional do partido oposicionista Vontad Popular.

Em junho, a ONU e o Foro Penal Venezuelano listaram 15.045 presos políticos entre janeiro de 2014 e maio de 2019. A maioria foi torturada “com aplicação de choque elétrico, asfixia com sacolas de plástico, simulação de afogamento, pauladas, privação de água e comida, postura forçada e exposição a temperaturas extremas” — descrevem, com base em 558 entrevistas.

Ainda assim, a ditadura venezuelana venceu no Conselho de Direitos Humanos por 105 votos contra 96 da oponente Costa Rica. Isso porque governos da região agiram com leniência no processo eleitoral.

Foi o caso do Brasil. Quando candidato, Jair Bolsonaro acusava o Conselho de inoperância — chegou a anunciar que, se eleito, abandonaria o organismo. Em setembro, na tribuna da ONU, mais uma vez usou a Venezuela como exemplo de desastre político provocado por “ideologia de esquerda”. Agora, na eleição para o conselho, o governo Bolsonaro se recusou a se opor publicamente à candidatura da Venezuela, ou a apoiar a Costa Rica. O chanceler Ernesto Araújo chegou a ser cobrado publicamente pela Human Rights Watch, organização de defesa dos direitos humanos: “Será que o governo brasileiro está ‘amaciando’ sua posição com o conselho para que possa manter sua vaga? Espero que ele não tenha feito esse pacto com o diabo”, disse Kenneth Roth, diretor da HRW, em entrevistas.

O resultado está aí. O Brasil de Bolsonaro se elegeu, com 153 votos, em par com a ditadura de Maduro para o Conselho de Direitos Humanos da ONU. A atual política externa se afirma como tragicômica.