O Globo, n.31.584, 27/01/2020. Mundo. p.15

Cai a ficha
Vivian Oswald

 

No próximo sábado, os britânicos acordarão fora da União Europeia (UE). Menos dramático do que boa parte dos vizinhos do continente, o povo deste lado do Canal da Mancha costuma ser avesso a demonstrações públicas de emoção. O estresse do Brexit encarregou-se de expor um lado do país distante da fleuma nacional. Isso enquanto ainda era apenas uma ideia no papel. Por mais que, na prática, nada mude em 1º de fevereiro, já que o período de transição vai até o final do ano, é agora que o Brexit começa de fato. O governo terá de correr contra o relógio não apenas para garantir que o país não saia perdendo com o fim do casamento de 47 anos, mas também—e sobretudo— que a vida do cidadão comum não piore.

— A ficha do Brexit finalmente vai cair — disse ao GLOBO Brian Hughes, autor de “A psicologia do Brexit: do psicodrama à ciência comportamental”.

O país do slogan keep calm and carry on (mantenha a calma e siga adiante), usado na Segunda Guerra, pode estar à beira de um ataque de nervos.

AMEAÇA À SAÚDE

Hughes compara os efeitos psicológicos do processo de separação da UE — que começou com o plebiscito de junho de 2016, quando a população optou por deixar o bloco — a uma experiência inevitável que afeta a todos, como uma guerra ou catástrofe natural, porque representa uma ruptura da normalidade. Segundo ele, cada vez mais pesquisas científicas confirmam o sentimento captado pelas pesquisas de opinião de queo Brexit é um fator de estresse.

—Isso não é novidade, já que aligação entre as condições socioeconômicas e a saúde mental está bem definida. A diferença é que o Brexit foi uma crise criada pelas próprias pessoas, que votaram pela saída da UE. Catástrofes humanas são sempre mais estressantes do que calamidades naturais. Por isso, vejo o Brexit como uma ameaça à saúde pública —disse Hughes, professor da Universidade Nacional da Irlanda.

Diante de tantas incertezas, as pessoas tentam garantir seu lugar depois do Brexit. Mais de 2,7 milhões de europeus deram entrada na papelada para ficar no Reino Unido, e 2,5 milhões já tiveram o pedido autorizado. Na semana passada, Londres confirmou que os europeusterão até junho de 2021 para fazer o pedido.

Muitos britânicos estão deixando o país rumo à UE. O número de partidas cresceu pelo décimo ano consecutivo em 2018. Foram 84 mil, contra 58 mil em 2015. Milhares de britânicos têm recorrido a antepassados irlandeses para tentar obter um passaporte que mantenha sua cidadania europeia. No ano passado, 50 mil conseguiram ,10 mil amais do que em 2018, e oito vez esmais do que o registrado em 2015.

Aportuguesa Maria Rosa ainda não sabe sequer ficarem Londres. Mas registrou-se, por via das dúvidas. Seu problema agora é saber se poderá comprar logo as passagens da mãe que vem ajudá-la com o bebê que está para nascer em maio.

—Não seis e depois da semana qu evem vão pedir passaportes na entrada. Hoje, é só mostrara carteira de identidade. Minha mãe não tem passaporte—disse.

O mercado financeiro também está com os nervos à flor da pele. Por mais que o governo afirme que vai negociar condições mais flexíveis para esse segmento, os europeus já avisaram que não aceitam operar sob regras distintas das que já existem na UE.

De acordo com as últimas pesquisas da Fundação de Saúde Mental do Reino Unido, metade dos entrevistados se sente impotente, enquanto 20% deles sofrem de ansiedade e um em cada dez perde o sono por causa do Brexit.

— Os defensores da permanência na UE sofrem mais do que quem votou pela saída. Mas estes também se sentem ansiosos e estressados —disse Brian Hughes.

Para ele, a eleição geral de dezembro, que confirmou o primeiro-ministro conservador Boris Johnson no posto, deu a sensação de que o debate havia acabado e que quem votou no Brexit “ganhou ”. No entanto, a população continua dividida. O que acontece no Reino Unido também pode ser visto em outros países. Analistas falam em ciclos, com pressões políticas ques e seguiram aos anos de austeridade. Historicamente, quando as fontes de recursos são ameaçadas, as lideranças políticas buscam maneiras de atribuir a culpa a alguém.

Psicologicamente, segundo o professor, as pessoas podem se dividir facilmente, porque preferem passar o tempo com quem pensa igual. É assim que os cidadãos reforçam suas crença senão conseguem entendera visão do outro. Oque aconteceu com o Brexit foi uma forma clássica de polarização de grupo:

— Embora tudo pareça caótico, temos de estar felizes com o fato de o Reino Unido se ruma democracia. Enquanto a democracia estiver protegida, a divisão tribal serápacífica. Mas, se ela for abalada, tudo muda. Onde não há democracia, divisões como essa podem levar até à violência— destacou Hugues.

CORRIDA CONTRA O TEMPO

Por essa razão, ele alerta que a psicologia da situação deve ser considerada com cuidado.

— A História mundial é cheia de avisos. E o Reino Unido não pode ignorá-los.

A agenda apertada do Brexit não contribui para acalmar os ânimos de uma população aflita. Se o cronograma correr como previsto, o período de transição termina em 31 dede zembro, quando estarão em vigor as novas regras de convivência entre o Reino Unido e a UE: o trânsito de pessoas e mercadorias pela fronteira, parceiras entre universidades, segurança, agricultura, pesca —alista parece não ter fim.

Johnson garante que não pretende pedir extensão desse prazo. Em junho, mês final para uma eventual prorrogação da transição, haverá um balanço das negociações. Espera-se que o acordo comercial negociado esteja traduzido e seja apresentado ao Parlamento Europeu no final de novembro, para ser ratificado até o fim do ano. Especialistas acham o prazo apertado. Sem um acordo, a relação entre Reino Unido e UE volta aos termos da Organização Mundial do Comércio (OMC), o que significa a imposição de tarifas sobre mercadorias.