O Globo, n. 31488, 23/10/2019. Economia, p. 23

Mais ampla reforma em três décadas

Marcello Corrêa
Geralda Doca
Renata Vieira
Assis Moreira
Pedro Capetti


O plenário do Senado aprovou ontem o texto principal da reforma da Previdência, medida econômica mais importante do governo de Jair Bolsonaro. A proposta recebeu 60 votos favoráveis e 19 contrários na votação em segundo turno, última etapa de tramitação da matéria. Com o aval do Legislativo, o Brasil passará pela mais ampla reestruturação do sistema previdenciário, coma alteração de dispositivos previstos na Constituição de 1988. A principal mudança é que, pela primeira vez, o país terá uma idade mínima de aposentadoria, com regras de transição.

O processo ainda não foi concluído porque os senadores não terminaram de analisar os destaques — propostas para modificar o texto principal. Dois deles foram derrubados ainda ontem, masa votação de outros dois destaques fico upara hoje.

Mesmo assim, o ponto principal da reforma está assegurado: a criação de uma idade mínima para aposentadoria de trabalhadores do setor privado, uma ideia em discussão há pelo menos duas décadas no Brasil. Pelas novas regras, quem ingressar no mercado de trabalho depois da promulgação da reforma só poderá dar entrada no benefício após os 65 anos (homens) ou 62 anos( mulheres ). Quem já está na ativa poderá optar entre quatro regras de transição.

‘Quem articulou foi Waldir’

A medida garante uma economia de R$ 800 bilhões em dez anos, segundo cálculos do governo. O impacto fiscal é menor que a previsão de R$ 1,2 trilhão estimada caso o texto original do governo tivesse sido aprovado da forma como foi enviado. A equipe econômica também não conseguiu aprovara transição para o regi mede capitalização, em que cada trabalhador contribui para sua própria aposentadoria. A ideia foi rejeitada na Câmara.

Em viagem à Ásia, Bolsonaro comemorou o resultado e escreveu em rede social que a aprovação abre caminho para o Brasil decolar de vez. Em Tóquio, disse que as mudanças não podem parar por aí. Segundo o presidente, a próxima etapa deves era reforma tributária ou administrativa ,“a que for mais fácil de passar”.

— A tributária sempre é complicada, há muito tempo se tenta e não se consegue. Acredito que a administrativa seja de tramitação menos difícil.

Ele comentou o placar de votação dizendo que foram “60 votos para agente” na chegada para o café da manhã em Tóquio e complementou:

— Não articulei nada. Quem articulou foi o delegado Waldir (ex-líder do PSL, que protagonizou embate com o presidente).

O texto só será promulgado quando Bolsonaro retornar ao Brasil. O retorno do presidente está previsto para 31 de outubro. Segundo o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), a sessão especial para promulgação será marcada para o dia 5, 12 ou 19 de novembro. Somente a partir desta data, as novas regras entram em vigor.

Alcolumbre classificou a aprovação como histórica e destacou a atuação do Senado, que, segundo ele, corrigiu equívocos e fez justiça social com os que mais precisam:

— O parlamento brasileiro entrega a maior reforma da Previdência da História deste país para o Brasil e para os 210 milhões de brasileiros.

Na avaliação de Paulo Tafner,especialista em Previdência, a abrangência do texto-base aprovado ontem é um resultado da falta de ajustes no sistema nos últimos anos.

— A população foi envelhecendo, as famílias foram tendo menos filhos e deixamos o tempo passar. Tivemos que fazer uma reforma mais forte, mais abrangente, pegando todos os tipos de benefícios, atacando vários privilégios. Não acabamos com todos, mas reduzimos — disse, destacando que, no futuro, o país precisará de novos ajustes nas regras de aposentadoria.

Risco em dois destaques

A sessão de ontem foi encerrada antes do previsto, diante do risco de derrota do governo na votação de um destaque do PT que resgataria regra extinta em 1995 que permitia a concessão de aposentadoria especial a categorias sujeitas a atividades de risco, como vigilantes. Se aprovado o destaque, a proposta poderia reduzir o impacto da reforma em R$ 23,2 bilhões em dez anos e ainda criaria o risco d eque o textor e tornasse à Câmara.

A medida chegou a começar a ser votada, mas senadores ficaram em dúvida sobre as regras atuais. Integrantes do governo perceberam que havia risco de que a modificação fosse aprovada. Assim, a análise da proposta ficou para hoje, junto comum desta queda Rede que nem entrou em discussão. O partido propõe retirara exigência de idade mínima para trabalhadores expostos a agentes nocivos, o que poderia reduzir o impacto da proposta em R$ 53,3 bilhões.

Perguntado se teme uma derrota nesses destaques, o secretário especial de Previdência e Trabalho, Rogério Marinho, disse que a estratégia foi evitar perder ontem. O adiamento da sessão é resultado de uma articulação mais forte de lideranças do governo, após terem sido surpreendidas coma manutenção das regras do abono no primeiro turno, que custaram à reforma R$ 76,4 bilhões.

— Talvez fosse mais arriscado votar hoje (ontem) — disse Marinho.

As mudanças dos governos anteriores
Com Fernando Henrique Cardoso, o fator previdenciário

Em 1998, o Congresso aprovou a reforma da Previdência de Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Passou a contar, para a aposentadoria, o tempo de contribuição, não mais o de serviço. E foi criado o fator previdenciário, fórmula matemática que leva em conta o tempo de contribuição do trabalhador, sua idade e a expectativa de vida da população. Mas a idade mínima, de 60 anos para homens e 55 anos para mulheres, ficou de fora: o então deputado Antonio Kandir (PSDB-SP) errou na hora de votar.
Lula mexeu no funcionalismo, com contribuição para aposentados

Em 2003, Lula (PT) passou sua reforma da Previdência, voltada para o funcionalismo. Os servidores aposentados passaram a contribuir para seu regime próprio. O valor da aposentadoria passou a ser calculado pela média das contribuições, deixando de ser igual ao último salário. E foi estabelecido um teto para o funcionalismo: o salário de um ministro do Supremo Tribunal Federal. Mas, por pressão de parlamentares ligados às Forças Armadas, a aposentadoria dos militares não foi alterada.
Dilma estabeleceu fórmula 85/95, que soma idade e tempo de trabalho

Em 2015, com o agravamento da situação fiscal, Dilma Rouseff (PT) optou por mudanças no sistema, mas recorreu a uma medida provisória (MP). Entre as alterações aprovadas estava a fórmula 85/95, que dá direito à aposentadoria integral quando o trabalhador atingir a soma da idade e do tempo de contribuição: 85 para mulheres e 95 para homens. A fórmula ganha um ponto a cada dois anos até 2026, quando terá de ser 90/100. Atualmente, a fórmula está em 86/96.
Temer queria idade mínima, mas foi atropelado por crise política​ 

A proposta apresentada por Michel Temer (MDB) em 2016 era ambiciosa. Previa mudança no pagamento das pensões e estabelecia idade mínima de 65 anos (homem) e 62 anos (mulher), com regras de transição. Só conseguiria a aposentadoria integral quem contribuísse por 40 anos. Mas, em maio daquele ano, houve o vazamento do áudio de uma conversa entre Temer e Joesley Batista, da JBS. Ao tentar abafar a crise política, Temer deixou a reforma em segundo plano.