O Globo, n. 31615, 27/02/2020. País, p. 4

Do 'zap' ao freio de dois poderes

Amanda Almeida
Carolina Brígido
Daniel Gullino
Gustavo Maia
Naira Trindade
Thais Arbex


O envio de um vídeo de WhatsApp pelo presidente Jair Bolsonaro, relacionado a protestos que têm como alvo o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF), provocou reação dos Poderes contra o apoio a manifestações que questionam o equilíbrio institucional do país. O presidente da Corte, Dias Toffoli, afirmou que “o Brasil não pode conviver um clima de disputa permanente”, e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), declarou que “criar tensão institucional não ajuda o país”.

Os ministros Celso de Mello e Gilmar Mendes e parlamentares de diversos partidos também reagiram. Bolsonaro afirmou que as mensagens eram de “cunho pessoal” e também pediu aos seus ministros que não falem mais sobre o tema. Após a repercussão, o primeiro escalão do governo não deve comparecer aos atos.

O vídeo encaminhado pelo presidente tem um minuto e meio e não faz menção direta ao Congresso ou ao Supremo. São exibidas imagens de protestos em Brasília na época do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. Com o hino nacional ao fundo, um narrador pergunta logo no início: “Por que esperar pelo futuro se não tomarmos de volta o nosso Brasil?”.

A narração segue com imagens da posse de Bolsonaro, do momento da facada, durante a campanha eleitoral, em Juiz de Fora (MG), e de suas passagens pelo hospital. “Basta”, diz o narrador em outro trecho. “O Brasil só pode contar com você. O que você pode fazer pelo Brasil? O poder emana do povo. Vamos resgatar o nosso poder. Vamos resgatar o Brasil.”

Visão “indigna”

Embora não haja referência direta aos outros Poderes da República, a peça deixa explícita a chamada para os atos que têm sido convocados como protesto contra as duas instituições.

Decano do STF, o ministro Celso de Mello afirmou ontem que o envio do vídeo demonstra “uma visão indigna de quem não está à altura do altíssimo cargo que exerce”. Em nota, Celso de Mello afirmou que Bolsonaro “desconhece o valor da ordem constitucional” e “ignora o sentido fundamental da separação de poderes”. “O presidente da República, qualquer que ele seja, embora possa muito, não pode tudo, pois lhe é vedado, sob pena de incidir em crime de responsabilidade, transgredira supremacia político jurídica da Constituição e das leis da República!”, escreveu o decano.

O presidente do STF, por meio de nota, defendeu a necessidade de harmonia entre os Poderes. “O Brasil não pode conviver com um clima de disputa permanente. É preciso paz para construir o futuro. A convivência harmônica entre todos é o que constrói uma grande nação”, disse Tofolli. Segundo o presidente do STF, “não existe democracia sem um Parlamento atuante, um Judiciário independente e um Executivo já legitimado pelo voto”.

Outro ministro do STF, Gilmar Mendes afirmou, no Twitter, que “a harmonia e o respeito mútuo entre os Poderes são pilares do Estado de Direito”. De acordo com Gilmar, que não fez referência a Bolsonaro, “nossas instituições devem ser honradas por aqueles aos quais incumbe guardá-las”.

O presidente da Câmara, por sua vez, avaliou caber às autoridades dar “exemplo” de respeito à Constituição. “Criar tensão institucional não ajuda o País a evoluir. Somos nós, autoridades, que temos de dar o exemplo de respeito às instituições e à ordem constitucional. O Brasil precisa de paz e responsabilidade para progredir. Acima de tudo e de todos está o respeito às instituições democráticas”, afirmou Maia.

O líder do PSL no Senado, Major Olímpio (SP), afirmou que classe política recebeu a informação com perplexidade. Ele disse que “quer imaginar que seja alguém usando o celular de Bolsonaro, como já ocorreu em outras circunstâncias”.

— Se não for, ele acaba apagando incêndio com gasolina. Já temos uma relação difícil entre governo e Congresso — avalia Olímpio.

Diante da polêmica, Bolsonaro usou suas redes sociais. Na manhã de ontem, afirmou que as mensagens trocadas com amigos pelo celular são “de cunho pessoal”. Sem fazer referência direta ao episódio, afirmou que usa suas redes para “uma intensa agenda de notícias não divulgadas por parte da imprensa tradicional”. Acrescentou que “qualquer ilação fora desse contexto são tentativas rasteiras de tumultuar a República”. No início da noite, em outra publicação, citou dois versículos bíblicos e acusou a imprensa de “mentir, deturpar, caluniar”.

O ministro da Secretaria Geral de Governo, Luiz Eduardo Ramos, afirmou à colunista do GLOBO Bela Megale que o presidente repassou o vídeo sobre os protestos devido à carga emotiva do filme:

— Ele fala da facada e sempre enche os olhos de água.

Não foi a primeira vez nos últimos dias que um integrante do Palácio do Planalto emite sinais de confrontamento com outras instituições da República. Na semana passada, gerou polêmica uma declaração do ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno, acusando parlamentares de fazerem “chantagem” com o governo.

Congresso e Executivo negociam sobre vetos feitos por Bolsonaro a mecanismos do chamado orçamento impositivo. Os parlamentares desejam derrubar os vetos para poder indicar a ordem de execução de R$ 46 bilhões de emendas. O governo negocia para que, caso o Congresso tome essa decisão, ao menos R$ 15 bilhões deste total voltem para o controle do Executivo e que não seja prevista nenhuma punição caso gestores não cumpram a ordem indicada pelos parlamentares.

Jornalista que revelou mensagens é atacada nas redes

Desde que publicou a mensagem de WhatsApp do presidente Jair Bolsonaro com um vídeo ligado a manifestações convocadas contra o Congresso e o STF, a jornalista Vera Magalhães tem sido hostilizada por apoiadores de Bolsonaro nas redes sociais. Vera revelou, na terça-feira, o envio do vídeo por Bolsonaro no site do jornal “O Estado de S.Paulo” e vem sofrendo ataques nas redes sociais inclusive com dados de sua vida particular sendo expostos.

A jornalista publicou ainda uma declaração do presidente feita em 2018 sobre eventual fechamento do Congresso: “Se caísse uma bomba H no Parlamento, pode ter certeza, haveria festa no Brasil”, foi a frase de Bolsonaro na ocasião.

Filho do presidente, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) reagiu, sugerindo que há um abismo entre a “bolha” em que vive a jornalista e a “população em geral”, e escreveu: “Se houvesse uma bomba H no Congresso você realmente acha que o povo choraria? Ou você só faz isso para tentar criar atrito entre o Presidente e o Congresso?”. Vera respondeu que jogar uma bomba no Congresso seria um“ato terrorista” eque ,“se o povo não se preocupar com isso, a democracia acabará”.

Em uma rede social, a jornalista escreveu que não se intimidará comosa taques sofridos .“Deixa eu só dize ruma coisa para vocês: não tenho medo. Em frente. Sempre. E viva o jornalismo profissional. Vamos todos juntos”.

Vera também foi atacada pelo ministro da Educação, Abraham Weintraub, e pela deputada Alê Silva (PSLMG), que fez referência a uma frase de Bolsonaro dizendo que a jornalista queria “dar furo”.

A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) divulgou nota de repúdio à ofensiva contra a jornalista. A entidade diz que Vera foi vítima de doxxing (exposição de dados pessoais) e da criação de um perfil falso em uma rede social. “Quem cria perfil falso pode ser responsabilizado civil e criminalmente. Na esfera cível, responde por danos morais e na criminal, por falsidade ideológica”.

A Abraji considerou “lamentável e preocupante” que o presidente divulgue, mesmo que reservadamente, “ato que vai contra o equilíbrio dos três poderes e contra a própria democracia” e destaca: “Ao desprezar o trabalho da imprensa, ele incita seus apoiadores a atacar jornalistas nas redes sociais, em clara campanha de linchamento virtual”. Há, pelo menos, dois vídeos circulando pelas redes sociais sobre o ato anti-Congresso.