O Globo, n. 31498, 02/11/2019. País, p. 4

Fora de investigação
Vera Araújo 
João Paulo Saconi



A promotora Carmen Eliza Bastos de Carvalho decidiu se afastar da investigação do assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, informou ontem o Ministério Público do Rio (MP-RJ). Publicações em que ela demonstrava apoio ao presidente Jair Bolsonaro em uma rede social vieram à tona esta semana. Após o Jornal Nacional noticiar que o presidente foi citado por um porteiro do condomínio onde morava, na Barra da Tijuca, em dois depoimentos, o MP afirmou que ele estava errado. Nos bastidores, havia receio de que o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) abrisse um processo administrativo contra Carmen.

Após a revelação dos depoimentos do porteiro, o MP concluiu, às pressas, uma perícia das gravações feitas da portaria aos moradores. O resultado, apresentado em entrevista coletiva na quartafeira — com a participação da promotora — apontou que foi o sargento reformado da PM Ronnie Lessa, acusado pela morte de Marielle e Anderson, quem autorizou a entrada do seu comparsa Élcio de Queiroz no condomínio, e não Bolsonaro, como havia dito o porteiro. A qualidade da perícia foi questionada pela Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais. Ontem, o deputado federal Marcelo Freixo (PSOL-RJ) solicitou formalmente que o procedimento seja refeito. Em uma das publicações, de outubro de 2018, Carmen aparece vestida com uma camisa estampada com o rosto de Bolsonaro. Em outro post, do dia 1º de janeiro deste ano, a promotora compartilhou uma imagem da posse presidencial e escreveu: “Há anos que não me sinto tão emocionada. Essa posse entra naquela lista de conquistas, como se fosse uma vitória”. Também há um registro dela ao lado do deputado Rodrigo Amorim (PSL-RJ), que quebrou uma placa com o nome de Marielle no ano passado. Os textos e fotos foram publicados pelo site “The Intercept Brasil”. Diante da repercussão de suas posições políticas, Carmen preferiu deixar a apuração do crime — ela tinha até ontem para decidir se permaneceria ou não na investigação. Consultados ontem, em reunião com o procurador-geral de Justiça do Rio Eduardo Gussem, os pais de Marielle e a mulher de Anderson se manifestaram favoráveis à permanência dela no caso.

Ao GLOBO, Marinete Silva, mãe de Marielle, disse que o afastamento “foi uma perda”. Antônio Francisco da Silva Neto, pai da parlamentar, afirmou que a saída de Carmen foi “uma vitória do outro lado”. Para ele, a promotora conduzia o caso “de forma inteligente”. — Foi covardia o que fizeram com ela. Independente de quem ela vote ou partido que apoie, o trabalho dela sempre foi pautado pela isenção. Somos testemunhas disso. Infelizmente, apesar do nosso apelo para ela continuar à frente das investigações e da ação penal, não nos ouviram — disse Antônio.

Em carta aberta divulgada pelo MP, Carmen afirmou jamais ter atuado “sob qualquer influência política ou ideológica” em seus 25 anos de carreira. Ela também afirmou que o promotor de justiça não perde “a sua qualidade como cidadão” e defendeu a liberdade de expressão.

Carmen ainda explicou que o afastamento do caso foi motivado “em razão das lamentáveis tentativas de macular minha atuação séria e imparcial, em verdadeira ofensiva de inspiração subalterna e flagrantemente ideológica”. Amigos próximos acreditam que pesou na decisão da promotora o fato de o filho dela, de 17 anos, ter sido atacado em redes sociais após a posição política da mãe se tornar pública. Com experiência em casos complexos, Carmen foi homenageada no mês passado na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) por sua atuação. Ela foi agraciada com a Medalha Tiradentes, a maior honraria do estado. Proposta pelo deputado estadual Carlos Augusto (PSD), a homenagem foi aprovada pela Casa e entregue pelo governador Wilson Witzel. Antes do caso Marielle, Carmen já havia chamado atenção na condução das investigações do desaparecimento do ajudante de pedreiro Amarildo Dias de Souza, em 2013. Dois anos após o crime, em 2015, a promotora abriu uma linha de investigação para apurar se policiais do Batalhão de Operações Especiais (Bope) tinham retirado o corpo de Amarildo da Rocinha, na Zona Sul do Rio, em uma caminhonete. As investigações não avançaram e a tese foi arquivada em abril deste ano. Ela também atuou na condenação do major Edson dos Santos, comandante da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Rocinha na época do crime.

Críticas de peritos

A perícia feita pelo MP continuou sendo alvo de críticas da categoria. Em nota, o Sindicato dos Peritos Oficiais do Rio de Janeiro lamentou não ter sido acionado para fazer a análise das gravações — o procedimento foi realizado por técnicos do próprio Ministério Público. O sindicato também questionou o fato da perícia ter sido feita com base em um CD fornecido pelo síndico do condomínio, e não nos equipamentos da portaria. O presidente da Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais, Marcos Camargo, afirmou que a análise foi superficial e alertou para a possibilidade de anulação do processo.

— A opção que acabou se tendo, ao nosso ver, em discordância com o Código de Processo Penal, foi uma flexibilização para menor do conteúdo probatório — alertou Camargo.