O Globo, n. 31490, 25/10/2019. Economia, p. 17

'Shutdown' para estados em crise

Manoel Ventura
Marcello Corrêa
Eliane Oliveira


O ministro da Economia, Paulo Guedes, estuda criar a possibilidade de um “shutdown” à brasileira para estados e municípios em gravíssima crise nas suas contas. Nos Estados Unidos, isso ocorre quando há paralisação total de pagamentos de salários e de alguns serviços públicos por falta de verbas. A medida deve ser incluída no pacote que o ministro prepara para ser anunciado na próxima semana como parte da agenda pós-Previdência.

O plano de Guedes, segundo fontes da equipe econômica, é permitir que governadores e prefeitos demitam funcionários, reduzam jornadas e salários ou interrompam programas estatais, a depender da situação das contas públicas regionais. Guedes quer criar a figura do “Estado de Emergência Fiscal”, que deve ser disciplinada em uma das propostas de emenda à Constituição (PECs) que serão entregues pelo ministro ao Congresso.

Essa situação de emergência fiscal será analisada quando um estado ou município for ao Conselho Fiscal da República apresentar suas contas e pedir o enquadramento na categoria. A criação do colegiado também será feita por meio da PEC que Guedes pretende enviar ao Congresso. O conselho será formado pelos presidentes da República, do Supremo Tribunal Federal (STF), da Câmara dos Deputados e do Senado.

O objetivo desse conselho, segundo interlocutores do ministro, é criar uma “cultura de responsabilidade fiscal” no país, dar mais segurança jurídica para as decisões do governo e evitar que atos da Justiça aumentem muito as despesas públicas. A proposta vai incluir ainda medidas para corte de gastos do governo federal, como as despesas com pessoal.

Para Felipe Salto, diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), ligada ao Senado, a reforma da Previdência é apenas o começo das mudanças nos gastos obrigatórios, e o governo está na direção correta ao sinalizar que pretende controlar os gastos com pessoal.

— Mas precisa ver qual vai ser o detalhamento da proposta. Permitir redução de jornada, nesse contexto de crise fiscal, é relevante, porém, é preciso ter cautela. Qualquer país tem que ter uma burocracia estatal, uma elite bem paga e bem formada. O que é preciso corrigir são os excessos que existem —disse.

Piso de saúde e educação

Em um julgamento sobre a Lei de Responsabilidade Fiscal, a maioria do STF já votou para proibir que estados e municípios reduzam temporariamente a jornada de trabalho e o salário de servidores públicos quando os gastos com pessoal ultrapassarem o teto previsto em lei, de 60% da Receita Corrente Líquida (RCL).

Por isso, integrantes da equipe econômica defendem que essa autorização possa ser dada por meio de uma proposta para alterar a Constituição.

Guedes estuda ainda eliminar o piso de gastos de saúde e educação em estados e municípios. Atualmente, a Constituição determina que estados devem destinar 12% da receita à saúde e 25% à educação. Municípios devem gastar 15% e 25%, respectivamente. A medida pode fazer parte da proposta de desvincular, desindexar e desobrigar gastos no Orçamento.

O argumento do ministro, em reuniões internas, é que não faz sentido haver os mesmos percentuais de gastos em todo o país, já que cada estado e município tem prioridades e necessidades diferentes. Para Guedes, é preciso entregar o poder de definição do Orçamento para a classe política.

Para o ministro, há estados e cidades cuja necessidade maior são gastos com educação e outros, com saúde. Nessa lógica, caberia ao governo local decidir onde aplicar mais recursos. Secretários de Fazenda estaduais reclamam que esses gastos são atrelados à receita. Por isso, todo o esforço extra de arrecadação é consumido nessas despesas.

Todas as medidas fazem parte da agenda econômica após a reforma da Previdência, que teve a votação concluída nesta quarta-feira pelo Senado. O formato completo das ações ainda está sendo fechado pela equipe do ministro e, por isso, pode sofrer alterações.

Ontem, o secretário do Tesouro Nacional, Mansueto Almeida, disse que os planos do governo para reduzir as despesas obrigatórias precisam passar por um “filtro político”. Por isso, afirmou, não é possível estimar qualé o impacto das medidas:

— Tem um conjunto de ideias, mas precisa passar por um filtro político. Ver com lideranças do governo e ver o que de fato é possível —disse o secretário, após participar de evento no Instituto Brasiliensede Direito Público( ID P ).— Agente está discutindo há seis, oito meses. Oque será enviado,oque não será. Depende da decisão de todos os líderes políticos, do ministro, do presidente, comoéa discussão de qualquer medida legislativa.

O pacote de Guedes inclui ainda medidas para aumentar o controle sobre os gastos públicos, alteração de regras sobre o Orçamento e ampliação de repasses federais para estados e municípios. Também será apresentada a reforma administrativa, que vai mexer nas regras para funcionários públicos.

Seis meses para propor

A equipe do ministro da Economia discute ainda se serão enviadas três ou quatro PECs ao Congresso, a serem discutidas simultaneamente na Câmara e no Senado. Alterar a Constituição exige o apoio de três quintos da Câmara e do Senado, em duas votações em cada Casa. O objetivo é apresentar os projetos ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), na próxima semana.

Com a realização de convenções motivadas pelas eleições municipais, a partir de julho do ano que vem, o governo do presidente Jair Bolsonaro conta com um período de seis meses para enviar e aprovar, no Congresso, novas propostas para melhorar o desempenho da economia. Segundo o secretário especial de Previdência e Trabalho, Rogério Marinho, a diferença de épocas passadas é que, desta vez, quem decidirá que medidas serão encaminhadas ao Legislativo será a sociedade brasileira.

— O que é prioridade para o país, a reforma tributária, o pacto federativo ou a reforma administrativa? São ações que esse Congresso, que é reformulador, está pronto para abraçar, mas é a sociedade que precisa dizer o que quer. Acabou aquele processo em que senadores e deputados estavam ilhados numa bolha em relação ao país —afirmou Marinho.

“Permitir redução de jornada, nesse contexto de crise fiscal, é relevante, porém, é preciso ter cautela”

Felipe Salto, diretor executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI)

“Tem um conjunto de ideias, mas precisa passar por um filtro político. Ver com lideranças do governo e ver o que de fato é possível”

Mansueto Almeida, secretário do Tesouro Nacional