O Globo, n. 31491, 26/10/2019. Rio, p. 12

Saúde virtual

Luiz Ernesto Magalhães
Renan Rodrigues


Em meio a falta de profissionais de saúde na rede de atenção básica, o prefeito Marcelo Crivel laa presentou ontem uma ideia inusitada. Depois de a tri buirà violência a dificuldade de lotar médicos nas Clínicas da Família, ele disse que planeja implantar um sistema de atendimento a distância. Ou seja, pacientes teriam consultas sem estar frente a frente com um especialista. O problema é que esse tipo de serviço, também defendido pela secretária municipal de Saúde, Beatriz Busch, não foi regulamentado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM). —Nesses locais (áreas de risco), temos dificuldades para colocar médicos. Assim, determinei que se faça o atendimento remoto. Vão estar um técnico, um enfermeiro e o paciente diante de uma tela. Do outro lado, aquele médico que nã opô deir(àc línica) em razão da violência, mas que ajudará de algum aforma no momento de angústia —disse Crivella.

Ideia é criticada

O CFM informou que, mesmo nos casos em que o atendimento a distância é permitido, o paciente deve contar com um médico ao seu lado durante a consulta. Essa prática é adotada quando profissionais de saúde desejam uma segunda opinião. Já o Código de Ética dos Médicos só permite avaliação virtual de um doente em situação de emergência. No início do ano, o CFM chegou a publica ruma regulamentaçãodo atendimento virtual. Porém voltou atrás, alegando necessidade de estudar melhor o tema porque falta consenso entre profissionais. Ao tomar conhecimento do plano de Crivella, o Conselho Regional de Medicina (Cremerj) o criticou.

— Médico fazer diagnósticos por tela de computador é inimaginável. Podes e rum tiro pela culatra. Somos totalmentecontrários ao atendimento a distância, que pode piorar ainda mais a saúde pública do Rio — disse o presidente do Cremerj, Sylvio Provenzano. Lígia Bahia, médica sanitarista e professora da UFRJ, fez coro, por temer o enfraquecimento da atenção básica: — A ideia é cruel e absurda. É algo que não existe em outros lugares do Brasil nem no restante do planeta. O conceito do programa Saúde da Família é exatamente aproximar médicos e pacientes. O que se propõe agora é simplesmente o oposto.

Apesar de afirmar que tem dificuldades para preencher vagas nas Clínicas da Família, Crivella anunciou ontem a convocação de 301 médicos e de 81 profissionais de apoio aprovados em concurso público. Além disso, prometeu abrir uma outra seleção para contratar 53 especialistas. Segundo a prefeitura, nos últimos 40 dias, Clínicas da Família tiveram que fechar( totalmente ou parcialmente) 209 vezes, por contada violência. Mas especialistas avaliam que não são apenas tiroteios e roubos que prejudicam o programa: a escassez de profissionais também seria um reflexo de cortes de investimentos. Ex-secretário de Saúde, Daniel Soranz disse que, há quatro meses, médicos que trabalham em parte da Zona Oeste deixaram de receber uma gratificação (que variava entre R$ 3.100 e R $3.500) par adar atendimento em unidades de áreas consideradas de risco ou de difícil acesso.

Ainda de acordo com Soranz, profissionais que têm mestrado ou doutorado perderam gratificações por qualificação. Além disso, ele destacou que muitos médicos vinculados às organizações sociais (OSs) que administram Clínicas da Família estão com salários atrasados.

— A prefeitura tem 127 das 1.106 equipes de Saúde da Família (11,48%) incompletas há pelo menos três meses. A população fica sem atendimento e o município perde recursos. O Sistema Único de Saúde (SUS) só repassa verbas para ajudar nas despesas das equipes que estão completas —destacou o ex-secretário. Em uma audiência realizada esta semana na Câmara Municipal para debate do orçamento de 2020, técnicos da Secretaria de Saúde disseram que pelo menos 216 equipes estão desfalcadas de médicos. Sem atendimento, a população vem manifestando indignação. Ontem pela manhã, um protesto de moradores do Caju e de funcionários da Clínica da Família Fernando Antônio Braga Lopes fechou a Avenida Brasil. A manifestação teve como objetivo chamara atenção para o fim do contrato da prefeitura coma Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM), responsável pelos atendimentos na unidade. Sem receber salários integralmente, médicos, enfermeiros, farmacêuticos e agentes de saúde entraram em greve. —A prefeitura atrasa repasses para as OSs e as equipes ficam sem receber. Esse problema não se limita às Clínicas da Família. Boa par tedos profissionais do programa de saúde mental (psicólogos e cuidadores, entre outros) está sem pagamento há 90 dias. Se não há recursos para honrar os contratosatuais, de onde viria o dinheiro para o projeto de atendimento virtual ?— questionou o vereador Paulo Pinheiro (PSOL), da Comissão de Saúde da Câmara Municipal. Citando dados do Fincon (sistema de acompanhamento financeiro da prefeitura), Pinheiro disseque a Secretaria de Saúde empenho uR $4,5 bilhões este ano. No entanto, acumula uma dívida de cerca de R$ 400 milhões com fornecedores e OSs. A conta não inclui despesas de anos anteriores que ainda não foram pagas. Desde janeiro de 2017, quando Crivella assumiu, foram extintas 184 equipes do Saúde da Família e 55 do Saúde Bucal. Com isso, segundo o Datas us,p ou comais de metade da populaçãoéa tendida pelos programas. Há três anos, o percentual chegava a 70%. Procurada para comentar o assunto, a prefeitura afirmou, por meio da Subsecretaria de Promoção, Atenção Primária e Vigilância em Saúde, que o Saúde da Família conta com 1.081 equipes, que “a vacância de algumas vaga sé temporária” equet rabalha com OSs para contratar profissionais. O órgão lembrou que a rede de atenção primária passou por uma reorganização, na qual equipes que atuavam em áreas com pouca demanda (e que, por isso, tinham baixa produção), foram desabilitadas, para permitir uma maior concentração de recursos e trabalhos em regiões mais carentes de serviços de saúde. A subsecretaria informou ainda que, antes da reorganização, o número de equipes era 1.264, eque a redução do índice de cobertura se deve a diferentes fatores, incluindo um amu dançada for made cálculo a partir de um anova padronização feita pelo Ministério da Saúde. Sobre o não pagamento de gratificações, o órgão alegou que setra tadeu ma medida de adequação à realidade financeira e orçamentária da cidade.