Correio Braziliense, n. 21400, 19/10/2021. Economia, p. 7

Mais um teste para PEC dos precatórios

Maria Eduarda Cardim
Fernanda Strickland


Aproveitando uma solenidade em celebração ao Dia do Médico, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, defendeu, ontem, a autonomia na relação entre médico e paciente e a liberdade dos cidadãos em relação às políticas públicas de saúde. As declarações foram, sobretudo, uma defesa velada da aplicação do ineficaz kit covid — segundo ele, "a relação médico-paciente tem que ser baseada na autonomia do médico e do paciente" — e da não obrigatoriedade de se vacinar, conforme pensa o presidente Jair Bolsonaro.

A posição manifestada por Queiroga em favor da autonomia médica vem no exato momento em que a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec) pode aprovar um relatório crítico ao uso de medicamentos sem efeito contra o novo coronavírus — como cloroquina, ivermectina e azitromicina.

"O vínculo médico-paciente é inquebrantável, não pode ser quebrado por quem quer que seja, nem pelo Estado. É uma relação entre a consciência do médico e a confiança do paciente", defendeu Queiroga, durante o lançamento do programa SOS de Ponta, que visa qualificar profissionais da urgência do Sistema Único de Saúde (SUS). Naquele exato momento, a CPI da Covid ouvia pessoas que perderam parentes para o novo coronavírus e faziam duras críticas à condução da pandemia pelo governo federal.
O ministro foi auxiliado pela secretária de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, Mayra Pinheiro — conhecida pelo apelido de "capitã cloroquina" por ser defensora do uso do fármaco no tratamento da covid-19. Ela afirmou que a autonomia médica foi questionada durante a pandemia.

"Não sabíamos que teríamos, ao longo de uma pandemia, o desafio de enfrentar pessoas que não conhecem a arte médica. Nada entendem de medicina e passaram a questionar a nossa autonomia, o direito da nossa relação médico-paciente, o direito das nossas escolhas, o direito de salvar vidas. Fomos questionados, estamos sendo perseguidos, desafiados a não exercer essa autonomia para qual nós fomos formados", observou.

Sobre a obrigatoriedade da vacinação contra a covid-19, Queiroga foi na direção daquilo que Bolsonaro ataca — como a adoção do passaporte de vacinação. O ministro indicou que o governo federal não apoiará tal medida, implementada em alguns estados.

"O governo do presidente Bolsonaro é um governo que defende fortemente a vida, desde a sua concepção, mas é um governo que defende fortemente a liberdade. Nós queremos que as pessoas, livremente, possam ter acesso às políticas públicas de saúde, como, por exemplo, a política de vacinação", justificou Queiroga.

Contestações
A Associação Médica Brasileira (AMB) manifestou-se contrariamente às afirmações do ministro e da secretária. De acordo com o presidente da entidade, César Eduardo Fernandes, "a AMB defende a autonomia, desde que a escolha seja feita sobre algo que a ciência comprova funcionar. Se não há evidências científicas, não é medicina. Nós, médicos, somos capacitados para buscar as melhores alternativas e melhores benefícios", afirmou.

Já a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) disse que não apoia o tratamento precoce. Em nota, salientou que "é uma sociedade científica, e todos seus posicionamentos se pautam na ciência, e não em meios sem fundamentação".
O infectologista Julival Ribeiro observou que "o médico, sim, tem que ter liberdade ao tratar seu paciente, entretanto tem que seguir os preceitos científicos que regem a ciência. Não se justifica usar medicação sem comprovação de eficácia para tratar a covid-19. Portanto, tem que ser baseado em evidências científicas".

Procurado pelo Correio, o Conselho Federal de Medicina (CFM) não se manifestou até o fechamento desta edição.

Especialistas temem "ola de neve"

Estudo encaminhado à Câmara pela Ordem dos advogados do Brasil (OAB Nacional) alerta que, se aprovada, a PEC do relator Hugo Motta, pode gerar um acúmulo de dívidas judiciais capaz de estourar o teto de gastos nos próximos anos. Segundo a OAB, a PEC irá criar um problema econômico que, hoje, não existe.
A conclusão da OAB vai na linha do que afirma Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara. "Se o pagamento dos precatórios for adiado, pode gerar uma "bola de neve" de R$ 672,4 bilhões a R$ 1,448 trilhão até o fim de 2036, quando acabaria o teto de gastos", diz uma estimativa elaborada pela consultoria.
"A PEC 23/2021 posterga o pagamento dos precatórios, em vez de tratar a questão como oportunidade", diz trecho do estudo da OAB.

Eduardo Gouvêa, presidente da Comissão de Precatórios da entidade, avaliou, durante audiência pública na semana passada, que a proposta contém mais de 30 violações constitucionais e, além de poder acumular dívidas com juros e correção, provavelmente irá gerar novas judicializações em razão do descumprimento do prazo para pagamento determinado pela Justiça.

"O teto, este ano, é R$ 39 bilhões. Ano que vem, vamos dizer que seria de R$ 45 bilhões, e que entrem mais R$ 90 bilhões. Então, serão acumulados mais R$ 45 bilhões, além de juros e correção dos R$ 50 bilhões que foram postergados. Essa fila (de precatórios postergados) fica interminável e imprevisível", afirmou Gouveia. "(Os credores) vão entrar com muitas ações de indenização. Isso porque o governo, ao não cumprir o pagamento no prazo estabelecido, vai causar prejuízo a pessoas, empresas e investidores", completou.

 

Teto de gastos
Ao Correio, Gouveia explicou que a solução estaria na PEC do deputado Marcelo Ramos (PL-AM, vice-presidente da Câmara), que sugere a exclusão dos precatórios do teto de gastos. "Não tem que abrir limite nenhum, tem que cumprir com precatórios fora do teto, porque é uma dívida pública, e não um gasto", defendeu.

Segundo ele, a PEC dos precatórios fere o Estado Democrático de Direito ao descumprir decisão judicial. "O governo tem R$ 1,7 trilhão no caixa do Tesouro. E mesmo que não fosse isso, ele tem que indicar uma despesa. (...) Vamos criar uma dívida nova, porque essa está acumulando juros e correção em cima desses débitos todos, e criar outra diferente, que são as ações pelo descumprimento do prazo de pagamento dos precatórios", alertou.

Além disso, Gouveia afirma que não há maneira eficaz de controlar o "saldo" de um teto de precatórios. "A PEC (de Hugo Motta) diz que não há como emitir precatórios além do saldo. Como irão controlar isso? É inexequível do ponto de vista prático e o Judiciário gastará bilhões somente para administrar essa loucura", pontuou. (FF)

Auxílio emergencial pode ser prorrogado
Ingrid Soares


Pressionado pela baixa na popularidade e pelo Centrão — e sem fonte de custeio para o novo programa social do governo, o Auxílio Brasil —, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que decidirá até o fim da semana sobre a prorrogação do auxílio emergencial. A declaração ocorreu, ontem, durante cerimônia em São Roque de Minas (MG). Bolsonaro afirmou que "bateu o martelo" sobre o valor do auxílio em reunião com o ministro da Economia, Paulo Guedes, no fim de semana, mas não deu maiores detalhes.

"Se Deus quiser, nós resolveremos, esta semana, a extensão do auxílio emergencial. Como devemos resolver, também esta semana, a questão do preço do diesel. As soluções não são fáceis, mas temos a obrigação de mostrar a origem do problema e como resolvê-lo. Sabemos que o mundo todo está tendo uma inflação muito além do esperado. Tem certos países de primeiro mundo que, inclusive, já enfrentam a questão do desabastecimento no tocante a alimentos", alegou.

"Temos aumento de preço no Brasil, estamos trabalhando no sentido de conter essa inflação, estimulando cada vez mais o agronegócio. Não vislumbramos desabastecimento no Brasil. Creio que, brevemente, a inflação começará a diminuir. A questão do auxílio emergencial, que está batido o martelo no seu valor, é um valor para dar dignidade a esses necessitados. O ideal seria que não houvesse nada, mas as consequências da pandemia agravaram essa questão e nós não somos insensíveis a esses mais necessitados", justificou.

Financiamento
O plano do governo era terminar o auxílio emergencial em outubro e iniciar o Auxílio Brasil, programa que deve substituir o Bolsa Família, em novembro. Porém ainda não foram aprovadas a PEC dos Precatórios e a reforma do Imposto de Renda, que ajudariam a bancar o programa.

Com a dificuldade de obter uma fonte de financiamento para o Auxílio Brasil, o governo estuda conceder um auxílio emergencial de transição, que seria pago àqueles não contemplados pelo novo programa social, e beneficiaria aproximadamente 20 milhões de famílias. A ideia é bancar parcelas de R$ 150 e R$ 250, em novembro e dezembro, por meio de um crédito extraordinário ao Orçamento. Essa possibilidade, porém, não agrada a equipe econômica.