O Globo, n. 31611, 23/02/2020. Opinião, p. 2
Deixem o carnaval se expressar
Antes mesmo de a Estação Primeira entrar no Sambódromo, hoje à noite, o ódio já desfila pelas passarelas obscuras das redes. A deixa para osh ater sé o enredo “A verdade vos fará livre ”, versão david ade Cristo, concebida pelo carnavalesco Leandro Vieira, em que o menino Jesus nasce numa manjedoura do Morro da Mangueira e assume as várias faces que representam uma sociedade diversificada como a nossa.
A simples divulgação do tema bastou para pôr em funcionamento a fábrica defakenew se atiçar todo ti pode patrulha, insultos e ameaças contra a escola. Vídeos e textos postados na internet acusam a verde ero sade blasfêmia e se referem ao Cristo mangueirense como comunista. “O desfile da Mangueira pode ser entendido como uma homenagem aos valores originais de Cristo, como a fraternidade, a compaixão e o abraço aos diferentes”, afirma Leandro.
A reação exasperada faz lembrar os ataques ao especial de Natal do Porta dos Fundos, que apresenta um Jesus gay. A escalada de ódio contra o humorístico desaguou nu minace itáve latenta do à produtora do vídeo, no Humaitá.
Entrou para a história do carnaval carioca a censura ao Cristo mendigo da Beija-Flor, no enredo“Ratos e Urubus ”, de Joãosinho Trinta, em 1989. Pouco antes de a escola entrar no Sambódromo, oficiais de Justiça, apedido da Igreja, vetaram a alegoria, que passou coberta por um plástico preto, comum a faixa: “Mesmo proibido olhai por nós”.
Parecia que esses tempos sombrios haviam ficado para trás. Até porque hoje a relação entre a Igreja e as escolas é mais amistosa. Nos últimos anos, muitos Cristos e santos desfilaram pela Sapucaí. Hoje e amanhã outros passarão, e não só na Mangueira.
Os desfiles das escolas de samba, assim como o carnaval de rua, são manifestações culturais e, como tal, refletem a pluralidade da sociedade brasileira. Historicamente, celebram a liberdade, a espontaneidade, a irreverência.
Porém, os arautos do politicamente correto demonizam marchinhas e rasgam figurinos tradicionais. O bloco Cacique de Ramos, que desfila desde os anos 60, é criticado por usar fantasias de índio. Algo surreal. Em São Paulo, a atriz Alessandra Negrini foi atacada nas redes, acusada de apropriação cultural, por ter desfilado num bloco, ao lado de indígenas, com cocar estilizado e pintura corporal feita com urucum.
Num estado democrático, quem se sente agredido recorre à Justiça. Ou protesta. Mas proibir, vetar, censurar, patrulhar, cancelar (nas redes sociais) são verbos que por definição não combinam com o espírito libertário do carnaval. Além do mais, contrariam a Constituição, que consagra a liberdade de expressão, reafirmada pela ministra do STF Cármen Lúcia na célebre frase “Cala aboca já morreu ”.
Há uma epidemia do politicamente correto se ampliando no carnaval, certamente insuflada pela polarização política por que passa o país já há algum tempo. Trata-se de séria ameaça à maior festa popular do Rio, marca inconteste da cultura carioca. Nela não cabem amarras ou mordaças.