Título: Novo papa: Martini ou Ratzinger?
Autor: Leonardo Boff
Fonte: Jornal do Brasil, 18/04/2005, Internacional, p. A9

Os dias que imeditamente se seguiram aos funerais do papa João Paulo II foram dedicados ao estudo e à troca de idéias entre os cardeais. Nos primeiros quatro dias, tratava-se de fazer uma análise da situação atual da Igreja em todas as partes do mundo, com seus avanços, impasses e contradições. Nos quatro dias subseqüentes, o tema central foi a análise da conjuntura do mundo, igualmente com seus impasses, crises, chances e obstáculos à presença da fé cristã. Desta leitura seriam definidos os grandes desafios que o futuro papa deverá enfrentar e quais características deveria o candidato apresentar para estar à altura destes mesmos desafios. É nesse momento que se constroem acordos básicos entre os cardeais para definir, como no mundo da política, a base eclesial necessária para garantir a governabilidade de um corpo tão complexo e multinacional como é a Igreja Católica, com 1,1 bilhão de fiéis. Tendências teológicas e ideológicas dentro da Igreja

É em ocasiões como estas que se manifestam as tendências básicas na Igreja, influenciadas pelas visões de mundo tão diferenciadas, consoante os lugares sociais e culturais dos respectivos cardeais, pelas teologias que circulam hoje na Igreja, pela maior ou menor fidelidade à tradição ou pela maior ou menor abertura ao mundo contemporâneo.

Duas tendências básicas vazaram e já se fizeram notar pela imprensa nacional e internacional. Foram assim formuladas: vai prevalecer a linha do papa João Paulo II representada pelo cardeal alemão Joseph Ratzinger ou a linha do papa João XXIII retratada pelo cardeal Carlo Martini, ex-cardeal de Milão? Que linhas são essas?

Para entender adequadamente estas linhas, cabe assinalar duas atitudes básicas que normalmente se confrontam dentro da Igreja.

A primeira crê na força da doutrina e da disciplina e a segunda na força do diálogo e da lógica intrínseca da vida. A primeira estima que a Igreja tem necessidade de ordem e por isso coloca todo o peso na obediência e no enquadramento de todos os fiéis. Essa atitude é majoritariamente assumida por setores hegemônicos da administração central da Igreja em Roma, a chamada Cúria.

A segunda pensa que a Igreja tem necessidade de libertar-se do peso de seu passado milenar e precisa sempre ¿aggiornar-se¿, vale dizer, atualizar-se para se fazer contemporânea às pessoas de hoje. Ela o faz pelo diálogo com as culturas e com os distintos saberes já que o Espírito Santo não está preso às amarras religiosas mas perpassa a história e fala às consciências das pessoas. Essa atitude é representada por grupos progressistas, presentes em todas as Igrejas e especialmente fortes nas Igrejas periféricas do terceiro mundo e no Brasil.

Duas estratégias: do testemunho ou do diálogo

Os cardeais Martini e Ratzinger dão corpo a estas duas tendências. Formulando agora claramente a questão, usando outra terminologia, corrente entre os analistas da Igreja: vai prevalecer na eleição do novo papa uma estratégia de testemunho ou uma estratégia de diálogo? Como se alinham os dois candidatos mais cotados para suceder João Paulo II?

O cardeal Ratzinger, na esteira do papa João Paulo II, é decididamente pela estratégia do testemunho. Isso quer dizer: vai achar importante que a Igreja dê testemunho de sua verdade, de sua espiritualidade e de sua segurança diante de um mundo pervadido de materialismo, saturado de ideologias e atribulado por todo tipo de inseguranças. Tal opção supõe a convicção de que a Igreja é portadora de uma verdade revelada e que tem o caminho certo a ser apontado para toda a humanidade. Esse testemunho desassombrado confere à presença da Igreja um sentido de missão salvadora, bem expressa pela forma imponente pela qual o papa em suas viagens pelo mundo empunhava a cruz. Ele testemunhava a fé pura e inteira e não tinha dúvidas sobre nada.

O cardeal Martini, na linha do papa João XXIII e também do papa Paulo VI, privilegia claramente o diálogo. Isto implica reconhecer que os cristãos são sim portadores de verdades, mas que não possuem monopólio delas porque o Espírito de Deus que está na Igreja está também na história e nas buscas das pessoas e dos povos. Os cristãos não podem pretender saber tudo. Eles também estão em busca de uma verdade maior e junto com todos os demais devem procurar uma verdade que não só fale à inteligência mas principalmente ao coração e ao maior número possível de pessoas. Uma verdade dissociada do amor e da comunhão com os outros é estéril. E o excesso de afirmação da verdade pode até ser pior que o erro, pois humilha as pessoas e as fecha à acolhida e ao diálogo. Pressupor que os outros não tenham verdades e que suas buscas são apenas acenos dirigidos ao céu é blasfemar o Espírito que enche a face da Terra. É ofender o Verbo que, como diz São João, ilumina cada pessoa que vem a este mundo e não apenas os batizados.