O Globo, n.31.580, 23/01/2020. Mundo. p.21
Príncipe é o suspeito
Dois relatores especiais da ONU divulgaram um comunicado ontem que afirma haver fortes indícios de que a Arábia Saudita, com participação direta do príncipe herdeiro Mohammed bin Salman, hackeou o telefone do fundador da Amazon.com, Jeff Bezos. No relatório, eles pedem que os EUA e outros países investiguem o caso.
“As informações que recebemos sugerem o possível envolvimento do príncipe herdeiro na vigilância do senhor Bezos, em um esforço para influenciar, ou mesmo silenciar, a cobertura do Washington Post sobre a Arábia Saudita”, escreveram os especialistas independentes Agnès Callamard, relatora especial para assassinatos extrajudiciais, e David Kaye, relator especial para liberdade de expressão, no comunicado no qual se dizem “muito preocupados” com o caso.
As autoridades da ONU afirmaram considerar confiável um relatório forense encomendado pela equipe de segurança de Bezos, que concluiu “com médio a alto nível de confiança” que o telefone do empresário provavelmente foi hackeado a partir de um vídeo contaminado enviado de uma conta do WhatsApp pertencente ao herdeiro saudita, conhecido pela sigla MBS. Bezos é dono do Washington Post, para o qual colaborava o jornalista saudita dissidente Jamal Khashoggi, assassinado no consulado saudita em Istambul em outubro de 2018.
VIGILÂNCIA DE ADVERSÁRIOS
O comunicado da ONU tambémdiz que há indícios de um padrão de vigilância contra possíveis adversários das autoridades da Arábia Saudita, que supostamente monitoram sauditas e não sauditas “percebidos como de importância estratégica” para o reino, especialmente diante das suspeitas de envolvimento do príncipe herdeiro no assassinato de Khashoggi.
A suposta invasão do telefone de Bezos e de outros “exige investigação imediata por parte dos EUA e de outras autoridades relevantes, incluindo a investigação do envolvimento contínuo, ao longo de vários anos, direto e pessoal do príncipe herdeiro nos esforços para atingir os oponentes ”, diz anota.
O relatório da FTI Consulting, contratada por Bezos, concluiu que grandes quantidades de dados começaram a sair do telefone dele horas após o compartilhamento do vídeo pelo número de WhatsApp de MBS, em maio de 2018. De acordo com o relatório, o vírus espião provavelmente usado foi o Pegasus-3, desenvolvido pela empresa israelense NSO. A desenvolvedora italiana Hacking Team também é mencionada.
O comunicado dos relatores da ONU lembra que o Pegasus-3 teria sido comprado pelos sauditas e usado para vigiar outros alvos, “em um exemplo concreto dos danos causados pela venda e uso sem regulamentação de aplicativos espiões”.
À época em que enviou ovídeo, o príncipes audita já estaria preocupado coma cobertura crítica que o Washington Post vinha fazendo do seu reino. Cinco meses depois, em outubro de 2018, Khashoggi foi assassinado no consulado em Istambul, onde havia ido buscar documentos para se casar com sua noiva turca. O Washington Post, entre outros veículos, informou na época que o cor podo jornalista foi esquartejado, e provavelmente dissolvido em ácido.
Em janeiro de 2019, o tabloide National Enquirer, do grupo American Media Inc (AMI), publicou uma série de reportagens sob reavida íntima deBezos,d ando detalhes de um caso extraconjugal dele com uma ex-apresentadora de TV, incluindo a reprodução de conversas dos dois por mensagem de texto. Foi então que o dono da Amazon e do Washington Post pediu a investigação da FTI Consulting.
Na época, ele já estava discutindo o divórcio com sua mulher, Mackenzie Bezos, de quem se separou em junho de 2019, pagando indenização de US$ 38 bilhões.
MENSAGENS ÍNTIMAS
Na época, o grupo AMI afirmou que soubera do caso porme iodo irmão da namorada deBezos,m asa equipe de segurança do empresário disse em março de 2019 “ter alta confiança” de que a Arábia Saudita tivera acesso ao seu telefone e obtido informações particulares dele, incluindo as mensagens de texto trocadas coma ex apresentadora.
O chefe de segurança de Bezos também falou que o príncipe herdeiro saudita tinha desenvolvido uma “relação próxima” com David Pecker, proprietário da AMI, por sua vez próximo do presidente Donald Trump. A Arábia Saudita disse então que não tinha nada a ver com as reportagens.
A Embaixada da Arábia Saudita nos EUA rejeitou o relatório da ONU. “Relatos recentes da imprensa que sugerem que o reino está por trás de uma invasão do telefone de Jeff Bezos são absurdos. Pedimos uma investigação sobre essas alegações para que possamos descobrir todos os fatos ”, afirmou a embaixada no Twitter.
A NSO negou que sua tecnologia tenha sido usada para hackear o telefone de Bezos, afirmando que seus produtos não podem ser usados em números de telefone americanos. No Twitter, Bezos postou foto sua em ho
Do aparelho invadido à denúncia
> Abril de 2018
Bin Salman e Jeff Bezos se encontram e trocam número de WhatsApp num jantar em Los Angeles durante uma visita do príncipe.
> Maio de 2018
Bezos recebe um vídeo de Bin Salman, e um vírus israelense se instala em seu celular. Horas depois, informação começa a ser copiada do aparelho do bilionário em grandes quantidades.
> Outubro de 2018 Dissidente saudita Jamal Khashoggi, colunista do Washington Post, de propriedade de Bezos, é assassinado no consulado saudita em Istambul. CIA diz que Bin Salman está por trás do crime. Jornal aumenta cobertura crítica à Arábia Saudita
> Janeiro de 2019 Tabloide National Enquirer revela caso extraconjugal de Bezos, em meio a seu processo de divórcio. Ele contrata firma FTI Consulting para investigar origem da informação que deu origem à reportagem.
> Março de 2019 Chefe da segurança de Bezos diz haver indícios de que governo saudita está por trás do hackeamento.
> Janeiro de 2020
As Nações Unidas dizem haver fortes indícios de que sauditas hackearam celular de Bezos, com provável envolvimento de Bin Salman. A entidade vê um padrão de espionagem de adversários do regime saudita e pede uma investigação internacional.