Título: O futuro da Igreja sem João Paulo II
Autor: Maria Clara L. Bingemer
Fonte: Jornal do Brasil, 18/04/2005, Outras Opiniões, p. A11

Agora que silenciaram os aplausos, os sinos e as aclamações pedindo a canonização imediata do Papa; agora que seu corpo repousa na cripta da basílica ao lado do apóstolo Pedro e seus sucessores; agora que o povo de Deus foi para casa viver seu luto e chorar sua saudade e orfandade do pontífice que se tornou símbolo inesquecível para toda a Igreja; agora é hora de pensar no futuro.

Os cardeais esperam, em Roma, apenas passar o novenário pelo luto de João Paulo II, a fim de começar, no próximo dia 18, o conclave que decidirá a escolha do novo papa. Tarefa difícil, depois de um papa como o que acaba de ir-se e que marcou de maneira indelével a história da Igreja. As especulações sobre o nome do sucessor ocupam os telejornais e páginas de jornais e revistas. Nomes são levantados, tendências apontadas, suposições declaradas. Em todo caso, tudo permanece no terreno da intuição e do desejo de antecipar-se a algo que quase sempre é uma surpresa. É legítimo, porém, pensar e refletir sobre os maiores desafios que enfrentará o próximo papa. Trata-se de um exercício sadio, que a Igreja pode e deve fazer, enquanto reza e espera que o Espírito Santo faça sentir sua presença inspiradora entre os cardeais reunidos em conclave.

O pontificado de João Paulo II durou quase três décadas. Durante esse longo tempo, o mundo mudou muito e em velocidade acelerada. Não só em termos geopolíticos, como em termos de avanço científico e tecnológico, e em termos comportamentais. Portanto, se ao ser eleito, em 1978, João Paulo II encontrou-se com o desafio de um comunismo ateu a combater e a derrubar, seu sucessor vai deparar-se, por exemplo, com o neoliberalismo feroz que transformou o ser humano de sujeito pensante em sujeito consumidor. A perda de horizontes mais largos e o afã por um consumir desenfreado impedem o ser humano de perguntar-se sobre coisas mais sérias e profundas, como o sentido da vida, e voltar-se com caridosa atenção para seus irmãos mais pobres e sofridos. O sucessor de João Paulo II deverá enfrentar e procurar responder a esse fruto perverso da pós-modernidade.

Outras áreas em que o mundo avançou e mudou muito foram as da ciência e das novas tecnologias. Muita coisa está em jogo aí: a questão das origens e do fim da vida, com todo o desafio do aborto, da eutanásia e da morte assistida; as novas pesquisas em engenharia genética fazem descobertas fascinantes, que por um lado representam esperança de cura para doenças antes incuráveis mas também ameaça às formas mais frágeis da vida.

Há todo um debate ético aí gestado sobre o qual é urgente que a Igreja se debruce seriamente a fim de dizer sua palavra sábia e maternal, ansiosamente esperada.

O novo papa tomará posse em um mundo plural religiosamente falando e deverá continuar o caminho de diálogo e troca fecunda que o Concílio Vaticano II iniciou e João Paulo II continuou com decisão firme. Certamente daí sairão coisas importantes para o futuro da humanidade em termos de grandes questões comuns e universais, como a paz e a justiça que poderão unir as grandes religiões.

Finalmente, há toda a área da moral pessoal - sexualidade, concepção e contracepção, matrimônio e segundas uniões, direitos reprodutivos - onde de novo é preciso reabrir velhas questões sem transigir com princípios radicados no Evangelho. Trata-se de abrir caminhos para ajudar as pessoas a viver, não lhes colocando sobre os ombros peso impossível de carregar.

Restam ainda as questões mais intra-eclesiais, como as do celibato obrigatório, a ordenação de homens casados, o lugar da mulher e do leigo dentro do corpo eclesial, os novos ministérios. Dentro de uma concepção de Igreja povo de Deus, não mais dividida rigidamente pela contraposição clero versus laicato, mas mutuamente fecundada pela interação comunidade-ministérios, é de se esperar que o novo papa busque e encontre caminhos que sustentem e robusteçam a cidadania eclesial para os tempos que vêm neste século XXI.

O que podemos fazer, de nossa parte é - humilde e modestamente, mas com a dignidade que nos concede os estatutos de batizados, filhos de Deus e da Igreja que amamos - rezar e estar sintonizados com esta tão importante reunião onde se decide o futuro da Igreja. E abrir e preparar o coração para receber o novo pontífice, dizendo-lhe desde já: ''Bem-vindo, Santidade!''