Correio Braziliense, n. 21404, 23/10/2021. Política, p. 2-3

Agarrado ao cargo, Guedes vira fura-teto

Rosana Hessel


Em meio ao turbilhão da crise provocada pelo fim do teto de gastos, o presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Economia, Paulo Guedes, precisaram agir para evitar um estrago maior junto ao mercado financeiro, ontem, na pior semana do ano para a Bolsa de Valores de São Paulo. Ao que tudo indica, as declarações não convenceram, pois Guedes admitiu que o governo vai furar regra constitucional que limita o aumento de despesas à inflação, a fim de justificar a criação do novo Bolsa Família de R$ 400 prometido pelo chefe do Executivo — o programa passará a se chamar Auxílio Brasil. A medida populista vai fazer mais estragos na economia, pois a inflação tende a permanecer elevada devido ao dólar mais alto, diante da desconfiança crescente. Com isso, os juros devem subir ainda mais, a economia vai continuar travada e o desemprego não deve diminuir, conforme alertam os especialistas.

A regra do teto é a única âncora fiscal vigente que mantém algum resquício de credibilidade no governo e na capacidade de controlar as despesas. O turbilhão gerado com as ameaças ao teto, durante a semana, culminou com a debandada de quatro integrantes da equipe econômica, liderados pelo secretário especial do Tesouro e Orçamento, Bruno Funchal, e pelo secretário do Tesouro, Jeferson Bittencourt.

Em meio aos rumores de que Guedes também tinha pedido demissão na quinta-feira, Bolsonaro foi ao encontro do chefe da equipe econômica em seu gabinete, num gesto político de que ainda confiava no Posto Ipiranga. Na entrevista coletiva, os dois desmentiram a entrega do cargo.

O jogo de cena ajudou a zerar as perdas da Bolsa, ao longo do dia, mas não evitou que o pregão fechasse no negativo. Na semana, as perdas acumuladas das empresas com capital aberto foi de R$ 350 bilhões em valor de mercado, conforme dados da Economática.

Na coletiva, Bolsonaro afirmou que não fará “nenhuma aventura” na economia e que respeitará o teto de gastos. “Tenho confiança absoluta nele (Guedes). Ele entende as aflições que o governo passa. Assumiu em 2019, fez um brilhante trabalho, quando começou 2020, a pandemia, uma incógnita para o mundo todo”, ressaltou.

Guedes, por sua vez, minimizou a saída dos secretários, destacando ser “natural” a dança das cadeiras. Ao admitir que o governo pretende descumprir a regra do teto, usou como justificativa a defesa do social e ainda criticou a comunicação. “Não é confortável para a Economia flexibilizar o teto, pedir um nível extrateto. Mas nós temos que escolher: vamos tirar 10 no fiscal e zero no social?”, questionou. “Eu detesto furar teto, não gosto, mas nós não estamos aí só para tirar 10 no fiscal. Houve um colapso de comunicação, todo mundo brigando. O teto é um símbolo de austeridade, mas não podemos deixar de atender aos mais vulneráveis”, acrescentou o ministro, que já criticou empregadas indo à Disney e filhos de porteiro fazendo faculdade.

Ao negar o pedido de demissão, Guedes admitiu que havia uma “pescaria” da ala política na busca de seu sucessor e ainda cometeu um ato falho: confundiu o nome do substituto de Bruno Funchal, o atual chefe da Assessoria Especial de Assuntos Institucionais da pasta, o ex-ministro do Planejamento Esteves Colnago, e o chamou de André Esteves, o banqueiro e sócio-fundador do BTG Pactual. Mais tarde, a pasta confirmou, também, o nome de Paulo Valle, que retorna ao Tesouro para substituir Bittencourt.

Guedes tentou isentar-se da culpa pela inflação alta e jogou a responsabilidade para o Banco Central: “Tem de correr um pouco mais com os juros”, disse.

Descrédito

Especialistas, entretanto, não se convenceram com as declarações de Bolsonaro e de Guedes de que o governo respeitará as regras fiscais e não haverá aventuras. Eles lembram que, na prática, basta olhar para o Congresso e ver os projetos que estão desmantelando o arcabouço fiscal e colocando o teto de gastos no chão. As propostas devem prejudicar ainda mais a população por meio da inflação mais alta.

A maior preocupação tem sido com a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) dos Precatórios, que dá uma pedalada no pagamento das dívidas judiciais. A matéria aprovada pela comissão especial da Câmara, na quinta-feira, muda a regra do cálculo do limite do teto de gastos, abrindo um espaço que pode superar R$ 90 bilhões, segundo algumas estimativas. Para atender 17 milhões de famílias e elevar o benefício a R$ 400, o governo precisaria de cerca de R$ 47 bilhões a mais no Orçamento. A desculpa de furar o teto por meio do calote de precatórios não convence, porque o espaço fiscal que está sendo criado com a burla das regras fiscais é muito maior. O pano de fundo é meramente eleitoreiro e populista, avaliam especialistas.

A desmoralização do governo e, principalmente, de Paulo Guedes no mercado é enorme, especialmente porque o ministro entrou em contradição e passou a se sabotar. Ele, agora, também é, no mercado, um “fura-teto”, apelido que deu a desafetos no Executivo em crises anteriores, quando também ameaçou deixar o cargo.

“O governo abandonou o teto de gastos. E na cabeça de Bolsonaro só tem duas prioridades: reeleição e defender a família das denúncias de corrupção. O resto, ele vai ver depois”, afirmou o economista Simão David Silber, professor da Universidade de São Paulo (USP). Para ele, Guedes “entrou gigante no governo e sairá um pigmeu”, pois parece um cadáver e não “reage mais”.

A economista e consultora Zeina Latif disse que o governo precisará apresentar medidas concretas de que vai preservar as regras fiscais e fazer ajuste fiscal, mesmo que gradual, porque o discurso não convence mais. “Não consigo enxergar correção de rumos”, destacou. “A credibilidade está muito arranhada.” (Colaboraram Ingrid Soares e Israel Medeiros)

O que disse o ministro

Fonte para Bolsa Família

“Nós tínhamos um plano de fazer dentro do teto o Bolsa Família, que seria em torno de R$ 300, e ao mesmo tempo, o Imposto de Renda, que daria a fonte. Então, você tem o espaço fiscal para fazer o Bolsa Família e tinha a fonte, que seria o Imposto de Renda. De repente, chegou o que eu chamei de meteoro. Nós temos limites de gastos, e um outro poder independente nos pediu para pagar muito mais do que estava previsto. Como o Imposto de Renda não avançou no Senado, nós perdemos a fonte.”

Aumento de gastos

“Como não há uma fonte permanente, porque o IR não andou, o governo não poderia ficar parado. O presidente tem que dizer: ‘Olha, eu não vou deixar de assistir os mais frágeis, vai acabar o auxílio emergencial, e como é que a gente vai ficar? Nós precisamos da solução. Como a solução tecnicamente correta não funcionou e a inflação dos mais frágeis funcionou, nós vamos ter de gastar um pouco mais. E aí começamos a construir isso juntos”

Saída de servidores

“Os nossos dois secretários que pediram para sair, isso é natural. O jovem secretário do Tesouro está tomando conta do Tesouro e outro da Fazenda, eles querem que fique nos R$ 300, que fique dentro do teto. A ala política, naturalmente, olhando para a fragilidade dos mais vulneráveis diz: ‘Olha, nós precisamos gastar um pouco mais. Deve haver uma linha de equilíbrio. É isso que estava sendo discutido e é o que entrou na PEC dos Precatórios”

Símbolo de austeridade

“Isso virou um colapso de comunicação nosso, da Economia, com a ala política e por uma falta de boa vontade e tolerância conosco. Nosso governo tem sofrido com isso. Resultado: isso virou uma guerra. Nós entendemos os mais jovens, que dizem: a linha é aqui, não pode furar o teto. Nós entendemos a política que diz o seguinte: o teto é um símbolo de austeridade, é um símbolo de compromisso com as gerações futuras, mas não vamos deixar milhões de pessoas passarem fome para tirar 10 na política fiscal e tirar zero em assistência aos mais frágeis. Do ponto de vista fiscal, não altera os fundamentos fiscais da economia brasileira. Não abala os fundamentos fiscais. Os fundamentos são sólidos.”

Procura por sucessor

“Teve uma ala política que andou indo lá no André Esteves, do BTG, perguntando assim: se o Paulo Guedes sair, quem é que a gente pode colocar lá? Dá para emprestar o Mansueto (Almeida)? Por ato falho falei André Esteves. Sei que o presidente não pediu isso, porque ele confia em mim, e eu confio nele, mas sei que muita gente da ala política andou oferecendo nome e fazendo pescaria política, inclusive, lá.”

Presidente responsável

“Se o presidente fosse populista, teria pedido R$ 600, R$ 700. O presidente tem o senso de responsabilidade (fiscal) e sempre me apoiou nas horas decisivas. Agora, ele me pediu o apoio. (…) Eu agora parece que fui promovido para os fura-teto. Eu não acredito nisso.”

Sem licença para gastar

“Não é uma irresponsabilidade fiscal, não há licença para gastar, não vai acontecer nada disso. Agora, há um pouco mais de espaço, mas fica tudo embaixo do teto. Eu estou feliz em furar o teto? Não. Detesto furar teto.”


Fritura é obra do Centrão
Jorge Vasconcellos


O Centrão está cada vez mais dedicado a tirar Paulo Guedes do Ministério da Economia, como escancarou o próprio titular da pasta, ontem, na entrevista coletiva ao lado do presidente Jair Bolsonaro. O bloco de partidos que dá sustentação ao governo representa, no Congresso, os interesses dos bancos e do setor produtivo. A raiz dos problemas com Guedes está no fato de o ministro ainda não ter entregado os resultados que prometeu, sobretudo as reformas.

A vida do titular da Economia ficou ainda mais difícil neste ano, quando o Centrão passou a comandar os ministérios da Casa Civil e da Secretaria de Governo, com Ciro Nogueira (PP) e Flávia Arruda (PL), respectivamente. Com a chegada dos dois parlamentares ao Planalto, o Centrão assumiu as articulações com o Congresso, o que inclui o controle da destinação das verbas bilionárias de emendas parlamentares.
A partir daí, os embates entre a ala política e a equipe econômica do governo subiram de temperatura.

A aproximação de Bolsonaro com o Centrão começou com uma rodada de reuniões no ano passado, quando a ideia era formar uma base de cerca de 250 parlamentares para blindar o chefe do Executivo contra o impeachment e aprovar projetos no Congresso. De lá para cá, uma sucessão de crises e o avanço de investigações aumentaram a dependência do Planalto em relação ao grupo político, que adere aos mais diferentes governos.

Escória
A relação entre Bolsonaro e Centrão é bem diferente do que se via à época da campanha presidencial de 2018, quando o então candidato do PSL prometia acabar com a "velha política" e o "toma lá, dá cá". Para conquistar os eleitores, ele chegou a dizer que o bloco era a "escória da política brasileira" e "o que há de pior no Brasil".
As conversas de Bolsonaro com representantes do grupo começaram em abril do ano passado, em meio a um aumento expressivo do número de pedidos de impeachment protocolados na Câmara por causa do comportamento do presidente na pandemia da covid-19.

A influência do Centrão no governo se fortaleceu em maio de 2020, com o início da distribuição de cargos para indicados dos partidos em órgãos importantes, como o comando do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs) e a diretoria do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). À época, o Supremo Tribunal Federal (STF) tinha acabado de abrir inquérito para investigar uma suposta interferência política de Bolsonaro na Polícia Federal.

Os espaços do Centrão no governo se ampliaram ainda mais em junho de 2020, após a prisão do ex-assessor Fabrício Queiroz, acusado de envolvimento com o esquema de rachadinha no gabinete do senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), quando o político era deputado estadual no Rio de Janeiro.

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No Congresso, apoio e críticas
Luana Patriolino
Raphael Felice


O aval do ministro da Economia, Paulo Guedes, à decisão do governo de ampliar o teto de gastos para turbinar o Auxílio Brasil — de R$ 300 para R$ 400 — causou reação no Congresso. Na avaliação do senador Otto Alencar (PSD-BA), presidente da Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) da Casa, Guedes trabalha com insegurança, e seu comportamento tem impactado o Brasil. “Vamos ter consequência já no terceiro e no quarto trimestres, no PIB (Produto Interno Bruto) deste ano, podendo haver até recuo. Isso para quê? Resolver problemas graves do país, conter desemprego e inflação? Isso tudo é para reeleger o presidente Jair Bolsonaro”, criticou. “Dane-se o Brasil e salve-se a reeleição de Bolsonaro, assim funciona a gestão de Guedes”, disparou.

O deputado Aureo Ribeiro (Solidariedade-RJ) também reprovou a atuação de Guedes à frente da Economia. Na opinião do parlamentar, o ministro não teve preocupação com a população de baixa renda e, agora, tenta se aproximar, por causa do pleito do ano que vem. “A popularidade do presidente despenca por conta dos erros da política econômica, e quem elege é o pobre, aquele mesmo, que ele não gosta”, disparou.

Para Ribeiro, Guedes não consegue lidar com a ala política. “A reação tardia deixou o país mergulhar numa recessão e aumentar a linha de pobreza. Ele fez pouco do Congresso e dos parlamentares. Não aceitou sentar para negociar em favor do povo”, acrescentou.

Na avaliação do deputado Ivan Valente (PSol-SP), a situação mostra que o Centrão — grupo político que sustenta a governo — está dando as cartas. “Ganhou a queda de braço, além de ganhar ministérios, emendas, cargos. Eles acham que Bolsonaro está fraco”, disse.

Conforme Valente, Bolsonaro tenta emplacar o Auxílio Brasil a qualquer custo para tentar garantir a recondução ao Planalto. “Uma proposta para vencer as eleições. Ele está usando o dinheiro para uma proposta demagógica”, destacou. “A eleição está chegando, e Bolsonaro, derretendo.”

Numa rede social, o deputado Marcelo Freixo (PSB-RJ) postou: “Bolsonaro acha que vai resolver os problemas do país mentindo e fabricando uma realidade paralela. Agora, em pronunciamento com Paulo Guedes, disse que a economia brasileira não está sofrendo. Temos 20 milhões de famintos e inflação explodindo. Mais um deboche com as famílias pobres”.

Defesa

Governistas, porém, tentam minimizar os prejuízos que a decisão provocará para o Brasil. O deputado Sérgio Toledo (PL-AL) defendeu que a equipe técnica de Guedes tem trabalhado para garantir a estabilidade do país, “pelo que o governo tem, pelo seu corpo de pessoas inteligentes e competentes, principalmente, Paulo Guedes”. “Ele sabe conduzir isso da melhor forma possível para não afetar o Brasil”, frisou.

O deputado Capitão Alberto Neto (Republicanos-AM) acredita que a piora da economia é por conta da pandemia da covid-19 e que o governo tenta amenizar a situação. “Todos os países estão sofrendo. No Brasil, não poderia ser diferente. Apesar de Paulo Guedes ter uma visão muito liberal, tem a sensibilidade de que nós temos uma situação de miséria”, afirmou.

O parlamentar viu como positiva a decisão de ampliar o teto para bancar o programa social turbinado. “Ele está alinhado com o presidente, e esse casamento trouxe mais desenvolvimento profissional. O foco é salvar as pessoas que estão, neste momento, na miséria”, ressaltou. “O Auxílio Brasil dobra o antigo Bolsa Família e é um instrumento primeiro para salvar essas pessoas. Vai ser importante para desenvolver lugares mais pobres”, argumentou.

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