O Globo, n.31.575, 18/01/2020. País. p.07

Comissão de Mortos e Desaparecidos 'acaba na prática', diz ex-presidente
Rayanderson Guerra 

 

Críticas. Eugenia Gonzaga durante entrevista. Ex-presidente da comissão vê restrição à reparação de familiares de vítimas
Onovo regimento interno da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, publicado na última quinta-feira no Diário Oficial da União, retirou duas das principais funções do colegiado: a emissão de atestados de óbito de vítimas da repressão na ditadura militar e a possibilidade de buscas por desaparecidos com base em novos requerimentos. As mudanças, segundo a ex-presidente da comissão, a procuradora regional da República Eugênia Augusta Gonzaga, "acabam com o trabalho" feito até aqui, considerado por ela uma forma de corrigir um débito histórico do Estado brasileiro.

A comissão é vinculada ao ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, de Damares Alves. Ao alterar o regimento, o governo estabeleceu que o colegiado só deveria atuar nos casos requeridos nos dois prazos anteriores: 120 dias após a sanção da lei, em dezembro de 1995, e 120 dias depois da atualização da legislação em 2004. Exonerada em agosto do ano passado — após a comissão emitir o atestado de óbito do pai do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, Fernando Santa Cruz —, Eugênia Augusta Gonzaga avalia que há um esvaziamento das funções do colegiado e restrição da reparação dos familiares dos mortos. — O que estão fazendo é uma restrição imensa da atividade de reparação dos familiares. Toda a jurisprudência diz que esse tipo de reparação por parte do Estado não está sujeito a prazos prescricionais e decadenciais — diz a ex-presidente do colegiado, que acrescenta: —Na prática, (o regimento) acaba com o trabalho desenvolvido na comissão. Em nota, o atual presidente da comissão, Marcos Vinicius Pereira, nomeado por Bolsonaro, disse que o novo regimento está "corrigindo irregularidades que vinham sendo praticadas com base no regimento anterior, mas que não estavam previstas na lei de regência". Afirmou também que o texto "deu fim aos procedimentos adotados erroneamente pela comissão, como emitir atestado de óbito, o que não é uma atribuição do colegiado".

FORA DA LISTA

As mudanças no funcionamento da comissão também levantam a discussão sobre a possibilidade de que casos envolvendo militares mortos no período entre 1964 e 1985 possam ser analisados pelo colegiado. A resolução estabelece a competência para reconhecer desaparecidos que estejam fora da lista de vítimas incluídas na Lei 1.940, de 1995, contendo apenas militantes políticos vítimas da repressão. — Temos interpretado que membros da comissão possam atuar na tentativa de promover algum tipo de reparação para o que eles consideram vítimas do terrorismo de esquerda e que tenham sido vítimas da luta armada — afirma Lucas Pedretti, do Instituto de Estudos Sociais e Políticas da Uerj.

Já Eugênia Gonzaga não vê o risco de inclusão de militares no escopo da comissão. Segundo ela, na criação da lei que estabeleceu o grupo, fica claro o objeto da comissão: a morte de pessoas por agentes do Estado:

— O drible que pode acontecer é considerar extinta a atividade da comissão porque ela já teria cumprido a sua finalidade e o prazo para novos requerimentos esgotado. O diretor do Instituto Vladimir Herzog, Rogério Sottili, afirma que o novo regimento é "completamente contra a lei" que criou o colegiado e abre espaço para interpretações fora da alçada de reparação de vítimas da ditadura.

— Essas mudanças vão na linha de esvaziamento total da comissão. E o que é mais grave é que tenta colocar procedimentos de busca e localização fora do escopo da responsabilidade do Estado. Esse é um dever do Estado —diz Sottili.

No ano passado, o governo mudou a composição do colegiado. Além de exonerar Eugênia Gonzaga e nomear Pereira, que é advogado, filiado ao PSL e atuava como assessor de Damares Alves, o presidente Jair Bolsonaro indicou para a comissão um coronel reformado, um oficial do Exército e a outro filiado do então partido do presidente.

"Mudanças vão na linha de esvaziamento total da comissão" _ Rogério Sottili, diretor do Instituto Valdimir Herzog

"(O novo regimento) Está corrigindo irregularidades. (...) Não é uma atribuição do colegiado emitir atestado de óbito" _ Marcos Vinicius Pereira, presidente da comissão