Título: O cavaleiro do balde
Autor: Eduardo Suplicy
Fonte: Jornal do Brasil, 17/04/2005, Outras Opiniões, p. A15
A experiência dos programas de transferência de renda no Brasil, em especial do programa Bolsa-Família, tem levado os economistas a reflexões muito interessantes, como a publicada no último dia 14, no Valor Econômico, pela professora Eliana Cardoso. Ela ali recorda o conto de Franz Kafka, O cavaleiro do balde, para ilustrar a situação dos sem-dinheiro, sem-terra, sem-teto, sem-camisa, sem-comida e que estão abaixo de qualquer linha de pobreza:
''Consumido todo o carvão; vazio o balde; sem sentido a pá; a estufa bafejando frio; o quarto inteiro atravessado por sopro de gelo; diante da janela as árvores rijas de geada; o céu um escudo de prata contra quem deseja o seu auxílio. Preciso de carvão; certamente não posso morrer congelado; atrás de mim a estufa impiedosa, à minha frente o céu igualmente sem pena, tenho portanto de cavalgar nítido entre os dois e no meio a ajuda do carvoeiro. Mas ele já está insensível aos pedidos costumeiros; é necessário provar-lhe com precisão absoluta que já não tenho uma só migalha de carvão e que sendo assim ele significa para mim o próprio sol do firmamento. Devo chegar como o mendigo que estrebuchando de fome quer morrer na soleira e a quem, por esse motivo, a cozinheira dos patrões resolve dar para beber a borra do último café; do mesmo modo o carvoeiro, furioso mas sob o raio de luz do mandamento 'Não matarás!', tem de atirar no meu balde uma pá cheia de carvão''.
Sintetiza Eliana Cardoso que o cavaleiro decide aparecer na carvoaria montado no seu balde, com a alça a lhe servir de rédea. Acontece que o balde vazio é tão leve que voa com seu cavaleiro acima da porta da carvoaria. O carvoeiro pensa ouvir um freguês. Sua mulher insiste que não ouve nada, abre a janela e abana o avental. O ar se move, o balde sobe ainda mais alto e o herói se perde para sempre nas montanhas geladas. Eliana observa que o balde vazio talvez represente uma privação tão grande que faz o herói levitar acima de qualquer ajuda possível. E talvez dessa privação exagerada tenha brotado a estratégia que seria a sua perdição. Estratégia quase tão defeituosa quanto a do cavaleiro do balde, qualifica Eliana, é a tentativa de concentrar o esforço de redução da pobreza com o programa Bolsa-Família.
As transferências de renda do Bolsa-Família são da ordem de R$ 50 mais R$ 15, R$ 30 ou R$ 45 pagos às famílias com renda mensal per capita até R$ 50, dependendo do número de crianças. São de R$ 15, R$ 30, ou R$ 45, respectivamente, se as famílias tiverem renda mensal per capita entre R$ 50 e R$ 100. As crianças dessas famílias, de 0 a 6 anos, devem tomar as vacinas obrigatórias, e as de 7 a 15 anos devem freqüentar a escola.
Eliana Cardoso considera que esses recursos modestos, em lugares onde a pobreza se perpetua de pai para filho, poderão até render votos, mas deixam o pobre amarrado ao seu beco sem saída. Esta ponderação guarda relação com a análise feita por Wanda Engel Aduan que na semana passada assumiu a chefia da Divisão de Desenvolvimento Social do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), em entrevista para O Globo domingo passado. Disse que os programas sociais brasileiros estão enfrentando dois tipos de problema: ter o apoio político necessário para se direcionar os recursos aos mais pobres, e a questão de como evitar a sócio-dependência - ou seja, transformar as redes de proteção em programas eternos para pobres eternos.
Temos como responder a isso? Sim. Com o desdobramento do projeto Bolsa-Família na Renda Básica de Cidadania já previsto na Lei 10.835, de 8 de janeiro de 2004. O Bolsa-Família caminha para abranger, até 2006, todas as famílias com renda mensal per capita até R$ 100. Isso dá, aproximadamente, 11,2 milhões de famílias, ou quase um quarto dos brasileiros. É sensato primeiro se prover o mínimo aos mais necessitados. Sabemos que, apesar de todo o esforço, o programa pode ainda não alcançar efetivamente a todos os mais pobres.
Mas isso será possível pagando-se a Renda Básica de Cidadania a toda pessoa, não importa a sua origem, raça, sexo, idade, condição civil ou mesmo sócio-econômica. Ela acaba com a burocracia: não precisa de cadastro e ninguém precisa dizer quanto ganha, já que todos têm direito; e acaba também com qualquer sentimento de vergonha ou estigma, já que ninguém vai precisar dizer, como o cavaleiro do balde, que nada recebe e que, portanto, necessita de um complemento de renda. É claro que os que os mais ricos colaborarão mais, até para que eles mesmos recebam como os outros. Termina também a sócio-dependência enfatizada por Wanda Engel Aduan, de alguém recusar trabalho para garantir a renda do programa.
A Renda de Cidadania deve perdurar como um direito básico, que normalmente crescerá com o progresso do país - ela mesma colaborando no processo de crescimento. Do ponto de vista da dignidade e da liberdade do próprio cavaleiro do balde, e de todo ser humano, será melhor para cada um saber que, daqui para a frente, ele próprio e todos na sua família receberão a renda básica de cidadania a cada mês, como um direito inalienável de ser sócio da nação brasileira.