O Globo, n. 31495, 30/10/2019. Opinião, p. 2

Sucesso fugaz na China

Marcelo Ninio


A cruzada ideológica do bolsonarismo mais inflamado contra inimigos imaginários sofreu na China uma contundente derrota do mundo real. Tudo somado, foi possivelmente a viagem internacional mais bem-sucedida do presidente Jair Bolsonaro, se considerados não apenas resultados imediatos, mas as possibilidades que se reabrem nas relações com a segunda maior economia do mundo. Em suas declarações e atos em Pequim, Bolsonaro atenuou a ansiedade dos chineses com o alinhamento aos EUA de Donald Trump e deu aval à sensata política de “equidistância” defendida pelo vice-presidente Hamilton Mourão quando esteve na capital chinesa, em maio.

Bem antes de caminhar na Grande Muralha, Bolsonaro já dava demonstrações de que cedera ao realismo em relação ao maior parceiro comercial do Brasil. Primeiro, com a visita de Mourão, que dissipou temores em Pequim de um afastamento do Brasil. Depois, na disputa pelo comando da FAO (Organização para Agricultura e Alimentação da ONU), que virou ringue de mais um round na nova guerra fria entre Washington e Pequim.

Foi um claro desvio no suposto alinhamento automático de Bolsonaro com os EUA, que fizeram de tudo para afundar a candidatura chinesa. A campanha foi um fiasco para Washington. Dos 194 países-membros da FAO, o chinês Qu Dongyu recebeu votos de 108, incluindo o Brasil. Enquanto os EUA se distanciam do multilateralismo, a China ocupa o vácuo: entre as 15 agências da ONU, quatro já têm um chinês no topo.

Segundo reportagem da “Foreign Policy”, Pequim conquistou o voto brasileiro após ameaçar que, se não o recebesse, bloquearia exportações agrícolas do Brasil. Jogo jogado, a posição brasileira foi uma vitória do pragmatismo da ministra da Agricultura, Tereza Cristina, sobre o olavismo do chanceler Ernesto Araújo, que antes da eleição defendeu “pressão em todas as frentes” para “virar o jogo da globalização contra a China”.

No primeiro dia da visita à China, Araújo negou no Twitter que havia mandado retirar do Itamaraty o busto de San Tiago Dantas, chanceler de Jango — “Não mandei, mas podia ter mandado”. Em seguida, atacou a Política Externa Independente (PEI) de Dantas, por “afastar-se dos EUA e da aliança das democracias liberais e ocidentais e bajular o bloco comunista”. Araújo preferiu esquecer que a PEI precedeu Dantas e manteve-se como referência da diplomacia brasileira até a eleição de Bolsonaro — inclusive na ditadura militar.

Na prática, Bolsonaro seguiu essa tradição na viagem à China. O gesto mais tangível de equidistância entre Pequim e Washington foi a isenção para chineses de visto para o Brasil, sete meses após a medida ter beneficiado os americanos. Quem viaja com o passaporte brasileiro continuará passando por um ritual burocrático para obter o visto de entrada na China.

Mas a ausência de reciprocidade não significa que não pode haver contrapartidas, caso a diplomacia brasileira saiba valer-se da posição de “credor” juntos aos chineses, seja para derrubar barreiras a exportações, facilitar negócios, ampliar intercâmbios científicos ou obter apoio de Pequim em instâncias internacionais. Um exemplo no horizonte é a sucessão no comando da Ompi (Organização Mundial da Propriedade Intelectual), no início de 2020. O candidato do Brasil, José Graça Aranha, é o mesmo que em 2008 foi derrotado por apenas um voto, numa eleição controvertida. Na época, Pequim votou contra o brasileiro.

A isenção de vistos não implica ausência de controle, que precisa ser reforçado para evitar imigração ilegal. Os chineses lideram o ranking de turismo, com 150 milhões de viagens pelo mundo em 2018. Só 70 mil foram para o Brasil. A isenção de vistos ajuda, mas não basta. Para a maioria dos chineses, o principal obstáculo é a falta de segurança no Brasil.

O histórico de ações diplomáticas desastradas do governo — ou mesmo contrárias à Constituição, como a interferência na eleição argentina — recomenda prudência sobre uma possível “virada de jogo” em favor do pragmatismo. Resta saber se Bolsonaro será capaz de aplicar o que defendeu em Pequim e tomar decisões “caso a caso” —tendo em vista interesses reais do Brasil, não inimigos imaginários.