O Globo, n. 31495, 30/10/2019. País, p. 10

Bolsonaro recua e pede desculpas ao Supremo

Daniel Gullino
Gustavo Maia
André de Souza
Bruno Góes


Em mais um capítulo de sua relação com o Supremo Tribunal Federal (STF), o presidente Jair Bolsonaro pediu desculpas ontem e afirmou ter sido um “erro” a publicação do vídeo que mostra ele próprio como um leão e compara a Corte, além de partidos e entidades, a hienas que o atacam. Há no Palácio do Planalto uma tentativa de manter boa relação com o STF. O governo atuou, por exemplo, para impedir a instalação no Senado de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) destinada a investigar tribunais superiores.

Em julho, o presidente do STF, ministro Dias Toffoli, atendeu a um pedido do senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) e suspendeu todos os processos judiciais em que dados bancários tenham sido compartilhados por órgãos de controle sem autorização prévia do Poder Judiciário, beneficiando o próprio Flávio. Essa decisão ainda precisa ser confirmada pelo plenário da Corte, o que pode ocorrer ainda neste mês.

O vídeo pelo qual Bolsonaro teve que pedir desculpas foi publicado na segunda-feira nas redes sociais do presidente e apagado cerca de duas horas depois.

— Me desculpo publicamente ao STF, a quem por ventura ficou ofendido. Foi uma injustiça, sim, corrigimos e vamos publicar uma matéria que leva para esse lado das desculpas. Erramos e haverá retratação — disse Bolsonaro, em entrevista ao jornal “O Estado de S. Paulo”, durante sua visita oficial à Arábia Saudita.

O presidente disse que não publicou o vídeo, mas afirmou que a “responsabilidade final” é sua e evitou culpar o vereador Carlos Bolsonaro (PSC-RJ), que tem as senhas de suas redes sociais.

— Não se pode culpar o Carlos. A responsabilidade final é minha. O Carlos foi um dos grandes responsáveis pela minha eleição e é comum qualquer coisa errada em mídias sociais culpá-lo diretamente. A responsabilidade é minha, tem mais gente que tem a senha e não sei por que passou despercebida essa matéria aí.

“Cortina de fumaça”

Antes da publicação da entrevista, Bolsonaro encerrou uma conversa com jornalistas ao ser perguntado sobre uma nota do ministro Celso de Mello, o mais antigo do STF, que chamou a postagem de “atrevimento sem limites”. Mais tarde, voltou a se recusar a comentar o tema.

A nota de Celso, divulgada na segunda-feira, não foi a única reação na Corte. Ontem, o ministro Marco Aurélio Mello considerou “deplorável” e “rasteira” a publicação

do vídeo. Para o ministro, trata-se de cortina de fumaça para distrair a atenção, em uma referência aos áudios divulgados nos últimos dias de Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio, e cuja movimentação financeira levou o Ministério Público a abrir uma investigação.

— Nesses tempos estranhos, tudo é possível, até mesmo essa cortina de fumaça. Tática rasteira no que enxovalha a instituição básica da República, guarda da Constituição, o Supremo. O exemplo, especialmente para o cidadão leigo, vem de cima. É deplorável. Aonde vamos parar? O Brasil precisa estar focado em coisas boas, construtivas, positivas, visando o bem estar de todos e não em futricas rasteiras — afirmou Marco Aurélio.

Em entrevista à rádio CBN, Marco Aurélio foi mais explícito ao citar os áudios:

— Eu tenho que nada surge sem uma causa. Qual seria a causa? Qual é o descontentamento com o Supremo? Não acredito que haja descontentamento com o Supremo. E as decisões do Supremo são para ser cumpridas. Agora há uma coincidência muito grande que esse foco surge justamente numa hora em que aparecem essas coisas envolvendo o assessor Queiroz.

Há um inquérito aberto no STF por ordem de Toffoli, e sob os cuidados do ministro Alexandre de Moraes, para investigar ataques e ofensas à Corte. Ontem, o ministro Gilmar Mendes foi questionado sobre se o vídeo poderia ser investigado nesse processo, mas disse que a pergunta deveria para o relator.

Eduardo desafia

Essa não foi a primeira vez que Bolsonaro recuou de críticas ao STF. Durante a campanha, disse que pretendia ampliar o número de ministros de 11 para 21, “para poder termos a maioria lá dentro”. Mas desistiu da proposta. Em outra polêmica durante a eleição, Bolsonaro precisou explicar um vídeo em que seu filho e deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) afirmava que “para fechar” o STF bastam “um cabo e um soldado”. O presidente disse, na ocasião, que “se alguém falou em fechar o STF, precisa consultar um psiquiatra”.

Em agosto deste ano, Bolsonaro admitiu que o plenário do STF acertou ao derrubar a medida provisória (MP) que transferia da Funai para o Ministério da Agricultura a competência de demarcação de terras indígenas. E reconheceu que não poderia ter reeditado uma nova MP sobre o tema.

Há duas semanas Carlos usou a conta do pai no Twitter para publicar mensagem defendendo a execução de pena após condenação em segunda instância, horas antes do início da sessão do STF que analisou o tema. Em seguida, apagou a postagem e disse que a publicação não tinha “autorização” do presidente.

Também ontem, Eduardo Bolsonaro disse em plenário que o governo brasileiro não vai tolerar o mesmo tipo de manifestação que ocorre no Chile. Ao citar o país como “referência” na área econômica, ele elogiou a política do ditador Augusto Pinochet e afirmou que a História pode “se repetir” no Brasil, referindo-se indiretamente ao período da ditadura militar:

— Se eles começarem a radicalizar do lado de lá, a gente vai ver a História se repetir.