O Globo, n. 31610, 22/02/2020. País, p. 4

Enquanto o acordo não sai: os bilhões do relator

Natália Portinari
Naira Trindade
Thais Arbex


Na disputa entre governo e Congresso pelo controle da execução de R$ 46 bilhões no Orçamento de 2020, vários ministros temem perder a ingerência sobre a enxuta verba de investimentos neste ano. Por isso, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno, disse que o Congresso está fazendo "chantagem" com o Executivo.

A maior parte dessas verbas, R$ 30 bilhões, são emendas de relator, ou seja, quem as controla é o relator do Orçamento deste ano, o deputado Domingos Neto (PSDCE). Com isso, ele terá uma verba maior do que a controlado pelos ministros do Desenvolvimento Regional, Cidadania, Turismo, Justiça, Agricultura e Mulher, Família e Direitos Humanos, segundo levantamento do GLOBO.

A ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves, por exemplo,teránesteanoR$63 milhões em verbas sobre as quais ela tem controle, as chamadas discricionárias. Já Domingos Neto poderá indicar a prioridade de R$ 151 milhões na pasta de Damares, e os demais deputados, R$ 216,8 milhões. A ministra da Agricultura, Teresa Cristina, também teria ingerência apenas sobre R$ 812 milhões, enquanto o relator controla R$ 1,4 bilhão da pasta.

A situação é inédita. Até o ano passado, o relator não tinha ingerência sobre a execução do Orçamento. A partir deste ano, ele pode ganhar o direito de determinar os beneficiários desses R$ 30 bilhões e, na prática, a ordem dos pagamentos, ditando quem receberá investimentos. Deputados e senadores ganhariam a mesma prerrogativa.

Ainda há um impasse. A proposta que deu esse poder aos parlamentares, em um projeto de lei de autoria do Executivo, foi vetada por Bolsonaro no fim do ano passado. Também foi barrada a previsão de um prazo de 90 dias para que o gestor liberasse as verbas após a indicação dos parlamentares, sob pena de ser processado por crime de responsabilidade fiscal.

A proposta previa ainda que os R$ 30 bilhões de emendas de relator não fossem totalmente contingenciados, quando o Executivo deixa para pagar depois. O governo também vetou essa previsão.

Parlamentares querem derrubar esses vetos e negociaram um meio-termo: manteriam o controle, mas devolveriam R$ 10,5 bilhões da verba do relator do Orçamento para os ministros, com um novo projeto de lei do Executivo. O governo, porém, deu sinais de que não está confortável com o acordo. Na semana em que os vetos seriam votados, o governo não enviou os projetos de lei prometidos. Depois, Heleno falou em "chantagem".

Há um novo acordo, que começou a ser trabalhado no início da noite de terça-feira na residência oficial do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP). Na presença do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), a equipe econômica assumiu o compromisso de convencer Bolsonaro a enviar um projeto alterando o Orçamento para "devolver" R$ 15 bilhões ao governo, mais do que os R$ 10,5 bilhões iniciais. Os líderes da Câmara afirmam que, caso o governo não entre em acordo com o Congresso, todos os vetos serão derrubados.

Um jovem relator

O deputado Domingos Neto foi escolhido como relator pelo seu partido, que ficou com o posto na distribuição de cargos após a reeleição de Maia à presidência da Câmara no ano passado. Neste ano, o relator do Orçamento de 2021 será um senador de outro partido.

A confiança no relator tem uma condição: dos R$ 30 bilhões controlados por ele, R$ 10 bilhões foram distribuídos entre deputados e R$6 bilhões entre senadores. Líderes foram agraciados com o direito de indicar uma quantia maior que os demais parlamentares. As indicações, informais, serão feitas ao longo do ano. Para evitar o impedimento de liberar verbas a prefeituras no período eleitoral, Domingos já tem uma ideia: liberar até maio os recursos "fundo a fundo", com um trâmite mais veloz, e só no fim do ano encaminhar processos mais longos.

— Eu percebi que o governo deixava de gastar em vários órgãos o que era destinado pelo Orçamento, e enviava projetos de lei ao Congresso para redirecionar essa verba depois. Então eu tirei do lugar que não gastava, e coloquei nos que estavam precisando — diz Domingos Neto.

Domingos Neto tem apenas 31 anos, mas já está no terceiro mandato. Ele foi líder do PSD até fevereiro de 2019. É filho de Domingos Gomes de Aguiar Filho, exgovernador do Ceará. Sua família, tradicional na política local, já esteve aliada a Eunicio Oliveira (MDBCE) no estado, mas agora se mantém mais afastada.

Alcolumbre recomenda 'puxão de orelha' a ministros

Em meio ao clima de tensão entre o governo e o Congresso pelo controle do orçamento impositivo, o Presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), pediu ao presidente Jair Bolsonaro para dar um "puxão de orelha" nos ministros Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) e Paulo Guedes (Economia) por não têlo informado do acordo costurado sobre o tema.

A reclamação aconteceu na última terça-feira, no gabinete presidencial, no Palácio do Planalto. Enquanto esperavam para a cerimônia de posse do ministro Braga Netto para a Casa Civil e de transmissão de cargo de Onyx Lorenzoni para a Cidadania, Davi Alcolumbre foi surpreendido com uma piada de Bolsonaro sobre o Congresso controlar parte dos recursos. Bolsonaro brincou que Davi queria "todo" o orçamento.

Alcolumbre se irritou e rebateu pedindo a Bolsonaro que "orientasse" seus ministros a lhe informarem os acordos que eles constroem. Segundo interlocutores do Planalto, Guedes entrou na sala logo em seguida e, ao perceber o clima tenso, tentou colocar panos quentes. Bolsonaro contemporizou e, depois, em gesto de paz, fez questão de descer a rampa para a cerimônia ao lado de Davi Alcolumbre e citá-lo em seu discurso dizendo que "precisavam fortalecer o relacionamento".

Um acordo anunciado na semana passada permitiria ao Congresso indicar a prioridade de execução de todos os R$ 16 bilhões de emendas parlamentares e de R$ 19,5 bilhões dos R$ 30 bilhões aprovados no Orçamento como emenda de relator em troca de se evitar punição ao gestor que não cumprisse a ordem em 90 dias. Guedes e Ramos participaram das negociações, lideradas no Congresso por Alcolumbre.

A equipe econômica sempre resistiu a ceder o montante desejado pelo Congresso. Ainda na tramitação do Orçamento, no ano passado, o assessor especial Esteves Colnago chegou a dizer, em uma reunião fechada, que o valor máximo que poderia ser liberado para o controle dos parlamentares era R$ 3 bilhões.

O fator Guedes

A aliados, Guedes disse que, apesar de ter participado do acordo, a equipe econômica não teria concordado com os termos finais. A preocupação é que, como grande parte dos recursos são carimbados, o governo teria disponível R$ 89 bilhões para os gastos, enquanto somente Domingos Neto (PSD-CE) controlaria R$ 30 bilhões, ou R$ 19,5 bilhões pelo acordo que foi anunciado.

Horas antes da reclamação de Davi a Bolsonaro, o ministro Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional) havia dito que o governo não poderia ceder às "chantagens" dos parlamentares. Na noite do mesmo dia, Guedes e Ramos se reuniram com Maia e Alcolumbre novamente e avisaram que o acordo havia sido quebrado.

Segundo interlocutores, Guedes chamou os valores de "exagerados". Os representantes do governo, então, assumiram o compromisso de convencer Bolsonaro a enviar um novo projeto de lei alterando o Orçamento para tornar R$ 15 bilhões que estavam carimbados como "emenda do relator" em verbas disponíveis aos ministérios, em vez dos R$ 10,5 bilhões acertados anteriormente. Deste total que o governo retomaria, R$ 3,8 bilhões iriam para a área de educação.

A previsão é que o governo envie até a semana que vem os dois projetos de lei que vão alterar as regras do orçamento impositivo e que o Congresso vote os textos já na primeira semana de março. O ministro Ramos afirmou que a preocupação está em aprovar as pautas do governo.

— Se mantivermos os vetos sob pancadaria, como ficaria o clima com o Congresso? É importante manter uma boa relação com o Congresso para aprovarmos as pautas do governo. Estamos trabalhando para isso — disse ao GLOBO.