O Globo, n. 31610, 22/02/2020. País, p. 8

‘Para Cabral, só resta a cereja do bolo, que sou eu’

Entrevista: Luiz Fernando Pezão


Cercado de cuidados para evitar expor sua tornozeleira eletrônica, o ex-governador do Rio Luiz Fernando Pezão, solto em dezembro, falou ao GLOBO sobre sua decepção e frustração com o ex-aliado Sérgio Cabral, condenado 13 vezes pelo esquema de corrupção desbaratado pela Lava-Jato. “Ele decidiu se voltar pra mim na 13ª condenação. Fiquei indignado”, disse Pezão, em sua casa em Piraí, no Sul Fluminense. O ex-governador não consegue explicar como conviveu por uma década, inclusive como chefe, com Hudson Braga, condenado pelo esquema, sem saber da corrupção que cercava Cabral, e conta que alertou o ex-aliado sobre sua ostentação.

É crível imaginar que um esquema de corrupção como o do Cabral ocorresse sem o senhor saber?

Eu, o Ministério Público Estadual e o Federal, o Tribunal de Contas do Estado, o Tribunal de Contas da União, a Controladoria-Geral da União... Ninguém nunca falou nada. Sempre alertava alguma coisa quando ouvia falar.

Então o senhor já imaginava que não tinha algo certo?

Todo mundo falava que o Sérgio ia ser preso, que não sei quem ia, que eu ia ser preso...

O senhor não percebia que ele ostentava?

Via. De vez em quando, eu perguntava. Ele falava que era tudo do escritório da Adriana, que dava cobertura a tudo. Falava que ela teve todos os clientes do mundo e dava sustentação para ele. Agora, eu vou entrar na relação dos dois e ficar perguntando: “E esse dinheiro e esse carro aqui?”

E o senhor acreditava?

O que eu ia fazer? Eu sou do MP ou do TCE? Ele tem a vida dele. Quinze dias antes da prisão dele, fui na sua casa em Mangaratiba e falei: “Sérgio, tem a lei de repatriação aí, as pessoas estão falando (de você). Pega o dinheiro se você tiver no exterior”.

Como o se sente ao ver subordinados, como o ex-secretário Hudson Braga, condenados?

Hudson trabalhava bastante. Ele confessou que existiram “sobras de campanha”. Nunca soube.

O senhor era o secretário de Obras quando já havia começado o esquema...

Não sabia das conversas que o Sérgio tinha. Ele falava disso nos depoimentos: “O Pezão não participava”. Agora, está dizendo que eu criei essas coisas . O que vale? A palavra dele antes ou agora?

Como o senhor encara ser citado nas delações?

Ninguém falou de mim, só o grupo do Sérgio. O Sérgio mesmo, só depois do 14º depoimento. Antes, ele me chamava de homem probo, honesto e correto. Depois da 13ª condenação, ele começou a se juntar com o Carlos Miranda (operador de Cabral), aquele que o Sérgio chamou de amarra-cachorro dele, que disse que não valia nada.

Qual é o seu sentimento por Cabral?

Tem hora que fico triste, indignado, decepcionado, mas não guardo ódio, rancor e raiva. Sou desprovido disso. Vejo que ele está tentando se defender. Só resta a cereja do bolo, que sou eu.

O senhor acha, então, que as delações estão combinadas?

Não tenho dúvida.

Como se sentiu ao ser preso?

Me acordaram violentamente. Tinha ido dormir 2h da madrugada e às 6h me acordaram com um aparato, uma coisa violentíssima.

Como passava o tempo na prisão?

Caminhava de manhã e à tarde, jogava bola, lia jornal, livros. Li muitos livros espíritas. Lá, tinha um grupo espírita que ia fazer palestra aos domingos. Eu assistia muito.

Algum político foi visitá-lo?

Não deixaram.

Mandavam mensagens?

Tinha muita solidariedade. O Wellington Dias (governadordo Piauí, do PT) tentou duas vezes ir lá. O Fernando Pimentel (ex-governador de Minas) e o André Ceciliano (presidente da Alerj) também.

E a Dilma, com quem o senhor tinha grande amizade?

Quem me mandava (recado dela) era meu advogado em Brasília, que trabalha gratuitamente para mim e que é um grande amigo: o José Eduardo Cardozo (ex-ministro da Justiça). O presidente Lula me ligou no fim do ano, o Rodrigo Maia (presidente da Câmara) foi muito solidário.

Qual sua rotina hoje?

Vou pouco na rua, porque não quero afrontar ninguém.

Quem está batendo aqui na casa para falar com o senhor?

Prefeitos da Baixada, vereadores, muita gente de comunidade do Rio. É o único ativo que vou levar da vida pública. Tenho direito à aposentadoria do INSS, mas não sai. Tinha feito um planejamento da minha vida assim: teria, quando saísse, R$ 200 mil na minha conta, que dava para viver um ano, com a aposentadoria da Maria Lúcia (sua mulher). Consegui guardar R$ 160 mil, R$ 140 mil gastei na minha doença.

Como está sendo pagar seus advogados?

O (Flávio) Mirza acabou virando amigo e me cobra apenas R$ 4 mil por mês. É muito mais caro do que isso. E o Cardozo trabalha de graça.

Como é usar a tornozeleira?

Não tem problema algum. Não ligo. Tem que carregar a bateriaportrêshoras.Nãopode dormir com o carregador.

A política morreu para o senhor?

Não penso mais na política.

Com tornozeleira, longe da praia, mas perto do Rei do Torresmo

Após deixar a prisão, o ex-governador Luiz Fernando Pezão tentou no domingo, dia 9 de fevereiro, retomar um velho hábito: andou alguns metros de sua casa até o bar preferido em Piraí, o Rei do Torresmo. Apesar do calor daquela tarde, usava calça comprida para esconder a tornozeleira eletrônica na perna esquerda.

O aparelho serve para garantir que ele estará em casa todos os dias de 20h às 6h, como impôs a Justiça. Fora desse período, pode circular por onde bem entender. A tornozeleira não é impeditivo de usar a piscina de casa, embora ele diga que isso quase não acontece.

— Mas eles indicam que não entre no mar e eu prefiro praia — diz, resignado.

Apesar de ter deixado a prisão em dezembro, o advogado Flávio Mirza indicou que Pezão não saísse de casa antes de depor à Justiça, o que só aconteceu este mês. Foi só depois disso que foi tomar a cerveja no bar preferido da cidade em que foi prefeito duas vezes. Pezão não esconde a decepção de ter sido fotografado na primeira escapada que deu.

No presídio, as bebidas eram geladas em um cooler de 25 litros. O gelo era levado pela mulher, Maria Lúcia. Comidas podiam ser guardadas na geladeira, dividida com outros 11 detentos.

Na prisão, além de jogar bola e ler, Pezão passou a assistir a novelas. Gostou muito de "Bonsucesso". A última que havia acompanhado passou há 45 anos: "O Bem-Amado". O protagonista era Odorico Paraguaçu, prefeito de Sucupira que representa o estereótipo dos políticos. Agora, em casa, o ex-governador deu um tempo dos capítulos e se concentra . Vê todos os vídeos dos depoimentos, lê as peças do processo e repassa argumentos ao advogado.