O Globo, n. 31443, 08/09/2019. País, p. 13

Estudo aponta lama da Samarco em Abrolhos
Ana Lúcia Azevedo


Mais uma data entrou para a história das tragédias ambientais brasileiras. O dia é 16 de junho de 2016, quando o rejeito do maior desastre ambiental do Brasil alcançou o mais importante ecossistema marinho nacional. Com um arsenal de tecnologias de sensoriamento remoto e análises químicas e de DNA, pesquisadores de universidades brasileiras — UFRJ, UFPB, Ufes, Uenf e USP — comprovaram que sedimentos da lama liberada pelo rompimento da barragem da Samarco, em Mariana, em 5 de novembro de 2015, chegaram a recifes de corais do extremo sul de Abrolhos nesse dia.

O estudo, publicado no último dia 29 por uma respeitada revista especializada, a “Science of the Total Environment”, reúne provas de que a lama de fato chegou a Abrolhos, um ponto contestado pela Fundação Renova, controlada pelas mineradoras Vale e BHP Billiton e encarregada de realizar estudos sobre os danos do desastre. Em nota, a Renova diz que o monitoramento de corais dos Abrolhos “foi iniciado em setembro de 2018 e deve durar cinco anos.”

Acrescenta que os dados “vão compor um relatório anual, que deve ser concluído até o final deste ano, com as primeiras interpretações das informações coletadas. Até o momento, os dados não indicam a ocorrência de danos aos recifes.”

Já o trabalho das universidades revela em detalhes o caminho percorrido pela lama até chegar aos corais do extremo sul de Abrolhos. Os recifes dessa área foram descobertos há menos de cinco anos e abrigam espécies em extinção de peixes e invertebrados. Esses recifes ficam a cerca de 80 quilômetros da foz do Rio Doce, que por sua vez está a 663 quilômetros de Mariana. O desastre levou o ferro de Minas Gerais para o mar, onde esse minério não existe e é fator de poluição.

Pesquisa independente

O trabalho evidencia a dimensão colossal que causam desastres de grandes empreendimentos, como os de mineração, num momento em que o Congresso analisa um projeto que flexibiliza o processo de licenciamento ambiental, segundo Fabiano Thompson, pesquisador do Instituto de Biologia e da Coppe/UFRJ. Ele esteve à frente deste novo estudo.

— É por isso que pesquisa independente é fundamental no Brasil para proteger os interesses da sociedade. Esse é o papel da ciência e das universidades

Rejeitos no mar

Um estudo de universidades brasileiras revela que a lama da barragem de Fundão em Mariana chegou no dia 16 de junho de 2016 ao sul do Banco de Corais de Abrolhos. Análises feitas com sensoriamento remoto, isótopos (química) e DNA (molecular) comprovaram a presença do rejeito nos recifes do sul de Abrolhos em 2016 e 2017. Não houve prosseguimento do estudo em 2018. Os recifes ficam a 81km da foz do Rio Doce. — destaca ele.

A lama de Mariana foi identificada em Abrolhos pelos cientistas também em 2017. Depois, não se sabe por quê, os pesquisadores não puderam dar continuidade ao estudo. De acordo com Thompson, embora existam programas de monitoramento de corais na região, os dados não estariam disponíveis. Em 25 de janeiro deste ano, a tragédia causada pela barragem da Vale em Brumadinho matou 270 pessoas e arrasou o Rio Paraopeba.

Mas em extensão de danos ambientais nos sistemas marinhos, o desastre da barragem da Samarco, que matou 19 pessoas, é maior. Os 45 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração arrasaram povoados rurais mineiros, afetaram mais de 30 cidades de Minas e Espírito Santo e devastaram o Rio Doce.

Deslocamento de mancha

Para fazer o estudo e chegar à data de 16 de junho de 2016, os cientistas primeiro analisaram padrões de vento e decorrentes marinhas e imagens de satélites. Fizeram um estudo dos padrões meteorológico e oceanográfico e acompanharam o deslocamento da pluma — o nome técnico dado à mancha de rejeito — no Atlântico. Descobriram que vento sul, normalmente ligado a frentes frias, levou a pluma para Abrolhos.

— O vento dominante na região é o norte, e por isso se dizia que o rejeito não chegaria a Abrolhos. Mas investigamos a climatologia e vimos a importância do vento no deslocamento do rejeito — explica Thompson. Também mostraram a assinatura do desastre em Abrolhos. Isso foi realizado por meio de análises isotópicas de matéria orgânica em suspensão na água coletadas nos recifes. Esses sedimentos têm uma espécie de assinatura química — a estrutura dos isótopos — que os identifica como sendo originários da região do Rio Doce e, portanto, do rejeito, segundo o cientista Carlos Rezende, da Uenf.

Depois disso, foram analisadas por meio de DNA populações de micro-organismos coletadas nos recifes. Esses microorganismos são associados à poluição por ferro. O resultado foi a impressão digital da lama de rejeito de mineração num conjunto de recifes de corais fundamentais para o litoral brasileiro. Abrolhos está no coração da biodiversidade do Atlântico Sul e da riqueza pesqueira no litoral do Nordeste e do norte do Espírito Santo.

— Não sabemos se os recifes e os corais, que são extremamente sensíveis, foram afetados pelo rejeito. O ferro não existe no mar e é um poluente perigoso lá. Nossas pesquisas estão em andamento — destaca Thompson. Rezende observa que o grupo dele planeja ainda este ano analisar os corais e compará-los a outros que não tenham sido atingidos. Também fará análises minerológicas mais detalhadas para traçar o perfil do impacto em Abrolhos.

— A lama é como uma bomba química, acionada por fatores naturais como o fluxo dos rios, controlado pelas chuvas. Esse é um tipo de impacto persistente por anos — frisa ele.