Título: O PT manda bala no alvo errado
Autor: AUGUSTO NUNES
Fonte: Jornal do Brasil, 16/04/2005, País / Coisas da Política, p. A2

O PT não sabe viver sem aquele que chama de FHC. A eventual aposentadoria política de Fernando Henrique Cardoso seria terrivelmente aflitiva para os petistas, sobretudo os estreitamente ligados ao presidente Lula da Silva. O sofrimento da turma superaria o do próprio PSDB, partido que tem em FH o mais ilustre filiado, o guia capaz de apontar o rumo a seguir na encruzilhada. Os tucanos decerto lastimariam a perda do patriarca já com largos capítulos assegurados nos livros de História do Brasil. Mas o PT perderia o alvo preferencial, o Grande Satã que empurrou o país para o inferno neoliberal, o sociólogo que forjou a herança maldita. Perderia uma espécie de guia pelo avesso. O que o PT deve fazer? O contrário do que Fernando Henrique fez ou prega. Não deixa de ser um norte.

Mandarins petistas nem sequer admitem que, se inclui um notável acervo de erros e pecados (alguns mortais), o legado da Era FH abriga avanços modernizadores e pelo menos dois feitos admiráveis. O primeiro foi neutralizar, reduzir e controlar a inflação que espancava o país com índices cada vez mais obscenos. O segundo foi a consolidação da democracia brasileira, atestada pelo clima de tranqüilidade que envolveu a posse do sucessor oposicionista.

Os desdobramentos do Plano Real, registre-se, seriam afetados por equívocos primários. Isso não autoriza o arquivamento de proezas que, dez anos depois, podem ser conferidas a olho nu. Operou-se, por exemplo, a ressurreição da moeda tanto no sentido amplo como no estrito.

Até o advento do Plano Real, um gari amontoava, em poucas horas, himalaias de círculos metálicos sem valia. Passados dez anos, mesmo moedas de R$ 0,05 raramente são encontradas nas ruas. Quem encontra trata de enfiá-la no bolso. O custo de vida continua a subir, mas dezenas de centavos ainda compram alguma coisa.

Na avaliação de FH, nada foi tão relevante quanto a consolidação do sistema democrático. Nos anos 80, só devotos visionários conseguiam enxergar a faixa presidencial no peito do migrante nordestino que comandara multidões de metalúrgicos em greve. Na campanha eleitoral de 2002, já não parecia absurda a ascensão de Lula ao poder. Mas vigorava a sensação de que haveria sobressaltos: a posse não seria serena. Foi.

Nada disso é levado em conta nas missas que periodicamente reúnem desafetos profissionais do ex-presidente. O celebrante é quase sempre José Dirceu, chefe da Casa Civil. Acolitado pelos coroinhas José Genoino e Aloízio Mercadante, Dirceu conduziu a mais recente cerimônia, que também abençoou mudanças no programa do partido. O demônio foi o de sempre.

Os juros continuam na estratosfera porque Lula herdou um país falido, trovejava o pastor. Culpa de FH e suas bombas neoliberais, emendavam os fiéis. Por que os programas sociais padecem de raquitismo?, provocava o celebrante. Porque primeiro foi preciso restaurar a casa republicana em ruínas. Quem provocara o desastre? Ele, naturalmente.

Integrantes da seita cedem com freqüência à tentação do insulto, excitados pela suspeita de que o grande inimigo tentará voltar em 2006. Além do equilíbrio emocional, perdem tempo. Setentão muito saudável, assediado por convites para encontros de celebridades ou para conferências no exterior (cada uma lhe rende no mínimo R$ 100 mil), afagado por procissões de visitantes quando estaciona em São Paulo, Fernando Henrique está feliz com a vida que leva. Não será candidato a nada. O PT fixou a mira no alvo errado.

O ex-presidente evita reforçar publicamente a imagem de arrogante que adversários vivem a atribuir-lhe. Mas acha que não vale a pena deixar a História para cair na vida.