O Globo, n. 31441, 06/09/2019. Rio, p. 15

Prefeito manda bienal recolher livro com heróis gays
Luiz Ernesto Magalhães
Fabiano Ristow
Felipe Grinberg


O prefeito Marcelo Crivella determinou ontem à noite que os organizadores da Bienal do Livro, que acontece no Riocentro, recolhessem todos os exemplares de uma história em quadrinhos, publicada pela Marvel, em que há super-heróis homossexuais. Em um vídeo divulgado no Twitter, o prefeito justificou a decisão de tirar “Vingadores — A cruzada das crianças” das prateleiras do evento argumentando que é preciso proteger “os menores de nossa cidade”.

— Determinamos que os organizadores da Bienal recolham os livros com conteúdos impróprios para menores. Não é correto que eles tenham acesso precoce a assuntos que não estão de acordo com suas idades — disse o prefeito.

Crivella teria tomado a decisão após ser pressionado pela bancada evangélica da Câmara Municipal. Na última quarta-feira, o vereador Alexandre Isquierdo (DEM) criticou a obra em plenário e apresentou uma moção de repúdio à Marvel e às editoras que publicaram o livro.

Ontem, o secretário de Ordem Pública (Seop), Paulo César Amendola, esteve no Riocentro para notificar os organizadores do evento. Ele determinou que fossem cumpridos dois artigos do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA) que estabelecem regras para livros infanto juvenis. O Artigo 78 diz que revistas e publicações com material impróprio ou inadequado a crianças e adolescentes devem ser comercializados em embalagem lacrada, com advertência de seu conteúdo. O estatuto também prevê que as editoras devem cuidar para que as capas que contenham mensagens pornográficas ou obscenas sejam protegidas com embalagem opaca. O Artigo 79, por sua vez, diz que “revistas e publicações destinadas ao público infanto juvenil não poderão conter ilustrações, fotografias, legendas, crônicas ou anúncios de bebidas alcoólicas, tabaco, armas e munições, e deverão respeitar os valores éticos e sociais da pessoa e da família”.

Evento terá painéis trans

Deborah Sztajnberg, advogada especializada em direito autoral e autora do livro “Cala boca já morreu: a censura judicial das biografias”, criticou a decisão do prefeito:

— Quero crer que a Constituição ainda é válida. Lá, diz que acabou a censura no Brasil. Uma decisão como essa precisa ser tomada por via judicial ou por decreto. O prefeito governa para uma cidade inteira e não para uma parcela da população que compactua das crenças dele.

À noite, os organizadores da Bienal do Livro divulgaram uma nota sobre o episódio, afirmando que o evento é plural. “A Bienal Internacional do Livro Rio, consagrada como o maior evento literário do país, dá voz a todos os públicos, sem distinção, como uma democracia deve ser. Este é um festival plural, onde todos são bem vindos e estão representados”. Os organizadores lembraram que, no próximo fim de semana, haverá dois painéis para debater a literatura Trans e LGBTQA+.

A direção do festival disse ainda que, “caso um visitante adquira uma obra que não lhe agrade, ele tem todo o direito de solicitar a troca do produto, como prevê o Código de Defesa do Consumidor”. Os organizadores não disseram se vão cumprir a determinação de recolher os exemplares da história em quadrinhos da Marvel.

A decisão de Crivella foi tomada dois dias depois de o governador de São Paulo, João Doria, mandar recolher uma apostila de ciências para alunos do 8º ano do ensino fundamental. O material explica os conceitos de sexo biológico, identidade de gênero e orientação sexual.