Título: Koan Zen
Autor: Sérgio Abramoff
Fonte: Jornal do Brasil, 16/04/2005, Outras Opiniões, p. A11

Uma cliente muito querida esteve em meu consultório no auge das discussões sobre o desligamento dos aparelhos que mantinham viva, havia 15 anos, a americana Terry Schiavo. Com certa perplexidade, queria minha opinião sobre o caso, pois ao ler uma matéria que defendia o desligamento da sonda de alimentação e hidratação, os argumentos lhe pareciam válidos, mas quando lia os que combatiam com tenacidade a atitude de deixar a pobre mulher morrer à mingua de fome e de sede, também lhe pareciam fazer sentido. Como explicar esses sentimentos ambivalentes? Como lidar com a angústia que estava sentindo por não poder dizer sim ou não?

O oriental é mais preparado para lidar com estas situações. Com afirmações paradoxais que chocam o bom senso, os mestres procuram abrir a mente de seus discípulos para novas formas de decifrar a realidade cotidiana. Como exemplo, ao ver dois discípulos discutindo se era a bandeira ou o vento o que percebiam a se mover no mastro, o mestre lhes apontou que o que estava se movendo, em verdade, era a mente deles. Ou quando o discípulo lhe disse que considerava aquela árvore de seu pomar como um Buda, e perguntou se poderia recostar-se nela, o mestre respondeu que sim. ''Mas posso mesmo?'' ''Não, não pode'', respondeu o mestre.

Queremos respostas conclusivas e generalizadas, partindo de premissas dogmáticas. Para a Igreja, para Bush, para os pais de Schiavo, e milhões de outras pessoas, mesmo em forma de vida vegetativa, ali estava um ser humano a ser cuidado, acariciado, velado. Faz sentido para a vida seguir em frente convivendo com a dor cotidiana, e compartilhar a tragédia que se julga parte inexplicável de nossa realidade.

Já para o marido de Schiavo, que ouviu o veredicto dos médicos, de que sua esposa estava em condição de morte cerebral, não registrando qualquer sensação (nem mesmo fome ou sede), fez sentido o desligamento de tubos que, de forma artificial, suportavam uma vida vegetativa. Como a guarda da paciente era sua, nada mais coerente do que a retirada da sonda de alimentação. Só não entendo por que os pais e o marido não se entenderam e chegaram a um acordo logo de saída, sem todo esse estardalhaço. E também é comum que esses pacientes, muito tempo acamados, tenham complicações infecciosas, sendo talvez menos agressivo não se administrar antibióticos do que retirar a sonda.

O exemplo recente do papa João Paulo II, sem dúvida alguma um líder espiritual de enorme magnitude, a ser lembrado por sua fé, paixão e força interior, nos mostra como é possível um relacionamento digno com uma doença progressiva e implacável. Em todo seu comportamento e integridade, foi sem dúvida um incansável inspirador e condutor de jovens para a fé católica, como nenhum outro antecedente. Um guerreiro alerta, defensor da paz entre todos os seres, independentemente de cor ou religião. Humilde e grandioso em sua mea culpa pelos excessos da Igreja nas Cruzadas e na Inquisição. A sua atitude, ao perceber a morte como inadiável, recusando-se a voltar ao hospital, e preferindo morrer em seus aposentos, circundado não por máquinas mas por fiéis seguidores, me parece bastante significativa e digna de respeito.

Existe assim, num caso como o de Terry Schiavo, a verdade da Igreja, a dos pais de Schiavo, a do marido dela, e a de cada um de nós, que devemos estar preparados para enfrentar nossa morte e a de nossos entes queridos de acordo com nossas convicções particulares. Não podemos querer convencer o outro de que nossa opção é a correta, como não devemos criticá-lo por atitudes que nos são estranhas. Não devemos nos enfrentar tanto por nossas diferenças, até porque, provavelmente, estamos todos, sem exceção, errados.