Título: O PT e a mulher de Lot
Autor: Gilson Caroni Filho*
Fonte: Jornal do Brasil, 16/04/2005, Outras Opiniões, p. A11

Quando a esmola é demais, o santo desconfia. Se, na esfera do sagrado, a assimetria entre intenção e gesto é vista com desconfiança, o que dizer na política, onde não há evidências empíricas de santidade? Publicações conservadoras, analistas organicamente ligados ao sistema financeiro e dirigentes de organismos multilaterais de crédito não têm poupado elogios ao que seria a modernização das tendências que compõem o campo majoritário do PT. Se a causa dos aplausos mora na conversão, não tão recente, à agenda liberal-conservadora, o suposto aggionarmento das bandeiras partidárias nada esconde que não seja o transformismo recorrente na história da esquerda .O que parece atualização não passa da reiteração do velho travestido de novo.

Longe de qualquer jacobinismo, o que nos move é a preocupação com os rumos de um governo que surgiu como promessa de forjar novo contrato social. Ousar compor, durante o processo eleitoral, com setores que historicamente se situaram no campo oposto ao da esquerda democrática, foi um gesto de ousadia. Como bem destacou Plínio de Arruda Sampaio, em entrevista ao JB, ''há plena consciência, em todos os setores da esquerda, de que o PT chegou ao governo'', mas não ao poder. A interlocução com atores conservadores se faz necessária se quisermos obter êxito no repactuamento reivindicado por amplos setores da sociedade civil.

Mas o balanço recente não é animador. Da assimilação doméstica do receituário do FMI, definida por Paulo Nogueira Batista Jr como ''espécie sui generis de substituição de importações'' ao anúncio de uma reforma sindical que privilegia o cupulismo em detrimento das negociações de base, a formação partidária do presidente desvincula-se celeremente das lutas sociais. À intocabilidade do latifúndio, soma-se uma Lei de Falências que inviabiliza o repasse do controle da empresa falida para os trabalhadores, em benefício do sistema bancário. E o que seria o projeto de Parceria Público-Privadas senão um sistema em que o Estado dá garantias de rentabilidade ao capital? O mundo do trabalho não tem o que comemorar quando seu maior partido troca o entusiasmo militante pela aprovação do mundo das finanças.

Se a permanência à frente do Estado é o único objetivo dos cardeais petistas, o realismo político deixa de produzir alianças que tenham como eixo um projeto de país. A coalizão requerida destrói o capital simbólico acumulado ao longo dos últimos 25 anos. O poder pelo poder impede uma base feita em sólida unidade de governo e abre espaço para pactos marcados pela lógica das nomeações e negociação de emendas. Romero Jucá não é acidente de percurso, mas produto natural do aliancismo desesperado. O documento ''Bases de um projeto para o Brasil'' não poderia ser mais emblemático na avaliação do quadro partidário: ''O caráter inorgânico dos partidos políticos brasileiros não favorece a formação de campos políticos definidos, fato que incide nas alianças, tornando-as muitas vezes incoerentes e incompreensíveis para a opinião pública''. Nenhuma definição poderia ser tão imprecisa em seus termos quanto clara nos propósitos.

Mesmo o esquerdista mais inconseqüente sabe que o beneficiário de um eventual fracasso do governo não estará no campo progressista. A temperança está na afirmação do dirigente da CPT, dom Tomás Balduíno: ''Dou graças a Deus que o Lula está aí e ao mesmo tempo o critico fortemente e ao PT''. Sábias palavras de quem destaca que o único avanço do governo é o diálogo, ainda que árido, com o movimento social. Se ao partido ainda cabe uma inflexão, só lhe resta seguir o exemplo da mulher de Lot. Desconsiderar desígnios divinos e olhar para o próprio passado. Se virar estátua de sal, é porque há muito já tinha cessado como movimento que se reinventa. O provável êxito eleitoral virá como derrota simbólica. A aposta é perigosa.

*Gilson Caroni Filho é professor-titular da Facha.