O Globo, n. 31564, 07/01/2020. Mundo, p. 21

Um conflito inscrito na vida de cada iraniano

Azadeh Moaveni



A última vez que escrevi sobre uma guerra com o Irã foi em 2012. Havia sido um ano especialmente carregado, com a Guarda Revolucionária realizando exercícios navais no Golfo Pérsico, Israel e os Estados Unidos realizando exercícios conjuntos, e insegurança nas rotas de transporte de petróleo. Manchetes especulavam que Israel poderia atacar instalações nucleares do Irã.

Minha tarefa era considerar "o dia seguinte": como os iranianos iriam reagir caso o país fosse bombardeado por Israel. Meu artigo apresentava cenas de jovens agitados reunidos em cruzamentos cantando o hino nacional — de repente todos eram cidadãos iranianos aterrorizados, ao invés de aspirantes a guitarristas ou trabalhadores.

Aquele ensaio parece ter sido uma preparação para o dia de ontem. Na semana passada, um ataque aéreo americano com drone incinerou o alto general do Irã e herói de guerra Qassem Soleimani, junto com um comandante militar iraquiano, no que só pode ser entendido como um ato de guerra.

Isso me faz sentir como se eu — uma cidadã americana de origem iraniana — já tivesse vivenciado essa situação antes. Os ciclos de guerra iminente e iranianos revoltados parecem destinados a se repetir a cada poucos anos, frequentemente impulsionados pelos caprichos dos EUA e pela crescente assertividade do Irã. Agora parecem uma herança civilizatória, um legado que minha mãe suportou antes de mim, e sua mãe antes dela, e que eu irei passar para meus filhos. Cada história familiar iraniana é tocada por esse passado.

O golpe de 1953 apoiado pelos americanos destruiu as carreiras do meu avô e do meu tio-avô, até então a serviço do governo, e fez com que meu tio-avô se exilasse. O apoio americano ao xá, e depois seu abandono, ajudou a moldar a revolução de 1979, tumultuou as nossas vidas, com as novas autoridades expropriando nossos bens, e levando um tio à prisão por pertencer à classe escolarizada pró-Ocidente que construiu o Irã moderno e via a revolução como seu fim.

Os anos seguintes só aprofundaram o abismo entre Estados Unidos e Irã. Houve a crise dos reféns entre 1979-1981 na embaixada americana em Teerã, que não deixou mortos no final, mas envenenou relações até hoje. Os Estados Unidos mal esconderam seu apoio ao Iraque nos anos devastadores da Guerra Irã-Iraque. Em 1988, no fim da guerra, houve o ataque da Marinha dos EUA contra um avião iraniano de passageiros que voava sobre águas territoriais do Irã, matando 290 pessoas. Profundamente deplorável, lamentou o então presidente Ronald Reagan, mas os oficiais navais receberam honrarias e medalhas.

Por décadas, os EUA muitas vezes pareceram movidos pelo impulso de ferir o Irã, às vezes por meio de políticas intervencionistas, e após 1979 com uma firme determinação desproporcional aos desafios impostos pelo novo regime.

Em determinado momento, o Irã começou a retaliar: na década de 1980, cultivou grupos regionais e milícias hostis a Washington. Encorajou-as a sequestrar pessoas do Ocidente e realizou ataques através dessas redes. Nos anos seguintes, o Irã desafiou a presença americana na região — a invasão do Afeganistão em 2001 e a do Iraque em 2003 —, ao apoiar aliados não estatais que se tornaram forças formidáveis por si próprias. Isso elevou o jogo de Teerã de uma resposta assimétrica a uma influência regional que provavelmente o país nunca concebeu alcançar. O general Soleimani estava por trás de grande parte dessa estratégia.

Muitos o consideram responsável pelas mortes de milhares, por sua intervenção no resgate do regime de Bashar al-Assad na Síria. No entanto, para muitos iranianos, iraquianos, curdos e outros, ele foi uma figura essencial para derrotar o Estado Islâmico, ajudando a repelir seu avanço no Iraque em 2014. Para os muitos sírios que suportaram a brutalidade em escala industrial de Assad, o general liderou uma força agressiva. Mas os líderes do Irã sempre lembraram que a Síria, o único país árabe que se alinhou com o Irã durante a Guerra Irã-Iraque, que durou oito anos, não poderia ser abandonada e que, sem ela, o Irã seria muito mais vulnerável na região.

É por essas manobras, em parte para dar ao Irã algum poder de dissuasão contra a implacável hostilidade americana, que o general Soleimani é lembrado. Ele havia se tornado um patriarca para um país à deriva, perdoado, ao menos pelas centenas de milhares de pessoas que compareceram ao seu funeral, pelos excessos da força que comandou porque deixou o território seguro em um momento de carnificina do Estado Islâmico. (Ele certamente não impressionou todos os iranianos, e possuía críticos que não apoiavam seus estratagemas.

Até o clérigo reformista Mehdi Karroubi, um octogenário confinado sob prisão domiciliar permanente, expressou condolências. Além dessa exibição oficial de união, jornais de todos os espectros políticos escureceram suas capas e exibiram fotos do general Soleimani de uniforme militar ou paletós escuros, com os veículos mais liberais estampando manchetes como “a tristeza é inconcebível”.

“O que fazer com um espinho alojado no coração? É este o destino de todos os distintos descendentes desta terra, independentemente do que pensam e de suas posições?”, escreveu o mais proeminente e frequentemente censurado escritor iraniano contemporâneo, Mahmoud Dowlatabadi, sobre o homem que ele disse ter “construído uma poderosa represa contra o sangrento massacre do EI" e “protegido nossas fronteiras de sua calamidade”.

Os iranianos se apresentaram em escala extraordinária para chorar sua morte, em cenas não vistas desde o funeral do aiatolá Ruhollah Khomeini em 1989. Um mar de pessoas encheu a praça central do século 17 de Isfahan, marco da História persa, e escoou pelas pontes e ruas de Ahvaz, homens e mulheres de todos os estratos da sociedade iraniana.

O luto pelo general, poderia ser dito, é o primeiro ato de retaliação do Irã: um extraordinário funeral de Estado de quatro dias em não um, mas dois países. A marcha uniu duas nações em ira pública e indignação compartilhadas, conforme a procissão passava deliberadamente por um arco de memórias históricas xiitas. Primeiro foram as cidades do sul do Iraque que Saddam Hussein manteve intimidadas, os santuários de Najaf e Karbala, passando pela província iraniana do Cuzistão, palco da luta mais sangrenta da Guerra Irã-Iraque, uma região árabe onde multidões cantavam em árabe e cuja inclusão nesse espetáculo de poder e identidade transnacional tem claro propósito de unificação.

Há quase 40 anos, o general Soleimani começou sua carreira nas trincheiras da Guerra Irã-Iraque, o drama formativo da República Islâmica, na qual o heroísmo foi aplaudido pela maioria dos iranianos que sentiam que o país era a vítima de ataques e isolamento. Os iranianos de hoje, que irão sofrer as consequências da sua morte, continuam economicamente bloqueados, em um estado de sítio virtual. Seu país continua, por desígnio das políticas americanas, sancionado e sem dinheiro, seus horizontes e potenciais extintos por proibições de vistos, escassez de remédios e inflação. Preso entre um sistema que cada vez mais sente que tem pouco a perder e a vingança total de um Estados Unidos sem planos, o Irã sofre há décadas com o que parece ser uma economia de guerra.

Lembro quando criança, durante os anos da guerra com o Iraque, que minha mãe me contava sobre parentes no Irã que deram suas joias para ajudar nos esforços militares. Desta vez, diante dos tuítes do presidente Trump ameaçando atacar o Irã e destruir seu patrimônio cultural, não preciso especular sobre a união que vem no dia seguinte. O país se juntou em luto.

*Azadeh Moaveni é analista sênior de gênero no International Crisis Group e autora, mais recentemente, de "Guest House for Young Widows: Among the Women of ISIS".