Título: Questão de fé
Autor: Paula Barcellos
Fonte: Jornal do Brasil, 16/04/2005, Idéias & Livros, p. 1

Pluralidade de religiões e variações de estilos de espiritualidade caracterizam as crenças contemporâneas

Ser religioso sem ter uma religião específica. Pode até soar paradoxal, mas é assim que muitos brasileiros - e estrangeiros mundo afora - estão se definindo. Uma definição oportuna frente a tamanho sincretismo religioso: cristais, Bíblias, gnomos, imagens de santos, tudo junto num mesmo altar. O fato é que se vive um momento de intensa variação de estilos de espiritualidade. De uma conseqüente mudança na concepção de fé. Ao menos da fé institucionalizada.

O teólogo Leonardo Boff lembra que fé, antes de ser apropriada pelas religiões e igrejas, é um dado antropológico. Com a fé, segundo ele, temos a ver com uma atitude de abertura e de confiança face à realidade, seja humana seja cósmica. Esse tipo de fé não dependeria das religiões e caminhos espirituais. Ao contrário, são eles que dependem desta experiência de base, humana, antropológica, presente em todas as pessoas. De certa forma, foi a exarcebação dessa fé que esteve presente em Roma nas últimas semanas.

Na Praça de São Pedro, milhares de fiéis - católicos ou não - viraram noites rezando por João Paulo II. Protestantes, espíritas, evangélicos, ateus, judeus. Um verdadeiro mosaico de fé se formou ao redor do Vaticano. A justificativa? Um papa carismático que defendeu o ecumenismo nos seus 26 anos de pontificado. Mais ainda, como apontou o antropólogo e professor da Unicamp Carlos Rodrigues Brandão em seu artigo ''Fronteiras da fé'', publicado na revista Estudos avançados: ''O verdadeiro sentido da experiência da fé da pessoa e da pessoa de fé, em um mundo culturalmente plural, está justamente na realidade e no direito à diferença, à peculiaridade cultural das manifestações da fé em inúmeras religiões convergentemente diversas''.

Junto à pluralidade religiosa, surge a competição. Padres, pastores, pais de santo, gurus se transformam em agentes da fé em busca de fiéis.

- Quem vive de religião disputa faixas de pessoas que podem ser convertidas. Eles vão à TV, gravam disco, estão na mídia. Isso transforma o campo religioso num campo concorrencial de muita projeção - enfatiza o sociólogo e professor da USP Antônio Flávio Pierucci.

A exposição na mídia, complementa, dá a impressão de que a fé é mais religiosa e menos institucionalizada. Hoje haveria mais liberdade, mais ativismo, mais concorrência. Mas esse cenário não implica a existência de uma crença maior, uma busca mais fervorosa pela fé.

- Dizer que a fé hoje é maior dá a impressão de que o mundo só explodiu agora. Não é bem assim. A religião foi para a esfera midiática, por isso a impressão de que a fé aumentou. É muito complicado dizer se somos mais ou menos religiosos - alerta Pierucci.

Nessa perspectiva, a fé estaria intimamente ligada às regras do mercado. No universo religioso brasileiro, multiplicam-se ''agências de conversão'' e de ''afiliação'', como os estudiosos denominam, de forma cada vez mais acelerada. Ao alcance de todos, sem distinções sociais, estão ''unidades de crença'' dos mais diversos tipos: pequenas seitas, igrejas estáveis e consagradas, agências fechadas em grupos de estudos, congregações orientais. Tudo exposto na tela da televisão, do computador. Basta um clique para se tornar um expert em uma ou outra crença. Para se dizer seguidor de um ou outro deus.

O professor Rodrigues Brandão ainda vai além. Para ele, nem mesmo o mundo profano dos negócios é capaz de transitar com tanta criatividade entre as alternativas de um franco e aberto mercado de bens simbólicos como o Pentecostalismo. Novas agências de tipo pentecostal, complementa, dotadas de poder nunca visto antes de conversões em massa, como a Igreja Universal do Reino de Deus, adotam padrões de expansão dignos das mais modernas empresas de serviços profanos.

O declínio do catolicismo no Brasil (ver gráfico página 2) - relacionado com o crescimento evangélico e com o aumento daqueles que se declaram sem religião -, como indica a antropóloga Regina Novaes no seu artigo ''Os jovens sem religião'', publicado na revista Estudos Avançados, produz mudanças fundamentais nas estratégias de apresentação social. É nesta geração que se generaliza a possibilidade de se declarar sem religião, sem abrir mão da fé. Ser religioso sem religião significa, segundo a autora, um certo consumo de bens religiosos sem as clássicas mediações institucionais.

O quadro que se forma, portanto, é de uma forte crise institucional e do fortalecimento de religiões e crenças individuais. O ceticismo e a falta de confiança em unidades representativas direcionam as expectativas coletivas à crenças pessoais. Se é preciso, como acentua Regina Novaes, desnaturalizar pares de oposição consagrados que polarizam religião e participação política e/ou ciência e religião, parece que grande parte dos fiéis brasileiros estão fazendo o dever de casa. A busca por novas crenças - muitas delas sem um nome específico - acaba evidenciando também que a ausência de religião (ateísmo ou agnosticismo) não é diretamente proporcional ao progresso da política e da ciência, como defendiam muitas correntes reminiscentes do marxismo.