O Globo, n. 31565, 08/01/2020. Sociedade, p. 24

Dengue teve segundo pior ano em 2019

Rafael Garcia


O ano de 2019 teve o segundo maior número de casos de dengue desde que a notificação obrigatória sobre a doença começou, em 1990. O Ministério da Saúde ainda não terminou de compilar casos registrados no fim do ano, mas, de 1º de janeiro a 7 de dezembro, o país tinha 1,53 milhão de notificações da enfermidade, a maioria delas em Minas Gerais e São Paulo.

O número perde apenas para 2015, quando 1,69 milhão de casos foram registrados. Em relação a 2018, foi um aumento de quase 600%. Segundo a SVS (Secretaria de Vigilância em Saúde), parte da razão para a explosão da epidemia foi a mudança no subtipo de vírus predominante no país.

— De 2010 a 2016, as nossas epidemias eram ocasionadas principalmente pela circulação dos sorotipos 1 e 4 do vírus da dengue. A partir do final de 2018, principalmente nas regiões Centro-Oeste e Sudeste do país, houve uma alteração, e o sorotipo 2 tornou-se predominante — explica Rodrigo Said, coordenador-geral do Programa de Vigilância e Controle das Arboviroses (vírus transmitidos por insetos e outros artrópodes). — Encontrando uma população com imunidade mais baixa a esse subtipo do patógeno, a dengue teve terreno fértil para se espalhar.

Segundo especialistas, a circulação de diferentes subtipos de vírus da dengue está tornando mais difícil prever a dinâmica das epidemias, principalmente depois da introdução dos vírus da zika e da chicungunha, transmitidos pelo mesmo mosquito, o Aedes aegypti.

No Rio de Janeiro, por exemplo, o subtipo 2 ainda não entrou com força, mas o estado foi o campeão de casos de chicungunha no ano, com 85.758 casos da doença notificados até dezembro.

Segundo Said, os anos de 2017 e 2018 foram um período “atípico” para as doenças transmitidas pelo Aedes, não só no Brasil, mas também em outros países tropicais. No Brasil, o subtipo 2 ainda não havia suplantado o 1 e o 4, e os fatores climáticos contribuíram para uma taxa de transmissão mais modesta.

— No final de 2018 e início de 2019, nós vivenciamos altas temperaturas, batendo recordes de 30 anos em alguns lugares — afirma Said. — Essa elevação da temperatura, associada a fatores socioeconômicos e ambientais que modulam a ocorrência das epidemias, aumenta o número de criadouros nessa época do ano.

Nordeste em alerta

Segundo o engenheiro sanitário, boa parte das atenções da SVS em 2020 estão voltadas para o Nordeste, que teve poucos casos em 2019.

— O litoral do Nordeste é uma área com alta densidade populacional, e lá o sorotipo predominante ainda é o 1. Temos observado a região esperando o momento da alteração para o 2, mas isso por enquanto não aconteceu —afirma Said.

Para especialistas, a presença de múltiplos arbovírus no país torna difícil não apenas prever o futuro, mas também entender o histórico passado da incidência da dengue.

— Desde 2016, os dados de notificação confundem muito, e é difícil interpretá-los porque não há uma correção —diz André Siqueira, pesquisador do Instituto Evandro Chagas e coordenador da Rede de Pesquisa Clínica e Aplicada em Chicungunha da Fiocruz. — Por exemplo: em 2015 houve epidemia de zika no Rio, mas até o meio do ano não se sabia que a zika estava circulando, então a maioria dos casos foi notificada como dengue. Como dengue é a arbovirose mais comum e mais antiga, sempre se notificou como dengue, mas alguns casos de dengue podem ser chicungunha.

Na opinião do infectologista, o Brasil precisa se esforçar mais para entender a dinâmica das arboviroses:

— A gente não tem se preparado de forma eficiente, usando formas mais sofisticadas de vigilância, mas é possível. Em São José do Rio Preto (SP), que mantém rede “sentinela” que faz diagnóstico preciso do sorotipo, conseguiram identificar a mudança do sorotipo 2 mais cedo, e foi possível montar um plano de contingência.

Segundo o pesquisador, controlar a disseminação do mosquito em grandes concentrações urbanas ainda é um desafio em cidades.

— Temos muito pouca capacidade de interferir na redução dos números de casos. Há problemas de urbanização, as cidades têm muitos criadores, há mosquitos com resistência a inseticidas, e o cenário climático de aumento de chuvas e temperatura impulsiona a proliferação do Aedes — diz o infectologista.

— Em alguns municípios, como o Rio de Janeiro, a rede de saúde está precária numa época crítica do ano.

Combate ao mosquito

Desde o meio do ano passado, o governo federal vem anunciando algumas medidas para tentar frear a volta da dengue, mas o trabalho surtiu pouco efeito no curto prazo. Uma das iniciativas foi a antecipação, de dezembro para setembro, da campanha de conscientização para eliminar os focos de água parada que servem como criadouros do mosquito.

Neste ano, o ministério diz buscar melhorar a articulação do poder federal com estados e municípios, que trabalham na linha de frente das epidemias. Said afirma que a SVS já realizou reuniões em todos os estados do Nordeste, a região prioritária de vigilância em 2020, para atualizar os planos de prevenção.

A ferramenta de saúde pública mais aguardada para o setor, porém, não deve estar disponível antes de 2021. A vacina de dengue desenvolvida pelo Butantan e pelos NIH (Institutos Nacionais de Saúde dos EUA) deve encerrar neste ano a terceira e última etapa de seu teste clínico. Mas, mesmo que o trabalho tenha êxito, o tempo de espera para licenciar o produto e incorporá-lo ao sistema de saúde torna difícil que o calendário de 2020 acomode uma campanha de imunização da dengue.

Além das campanhas de conscientização, o Ministério da Saúde estuda expandir projetos como o uso da bactéria Wolbachia e de mosquitos irradiados para controle do Aedes, diz Said.

“Temos muito pouca capacidade de interferir na redução do número de casos. (...) O cenário climático de aumento de chuvas e temperatura impulsiona a proliferação do Aedes” André Siqueira, infectologista do Instituto Evandro Chagas