O Globo, n. 31566, 09/01/2020. Mundo, p. 22

No palco do conflito, iraquianos têm medo

Carla Aranha


O fotógrafo e cinegrafista americano Steven Anderson, de 38 anos, acordou por volta das 2h da manhã desta quarta-feira com um forte barulho. Imediatamente, seu celular começou a receber dezenas de mensagens de parentes e amigos dos Estados Unidos. Anderson mora em Irbil, capital do Curdistão Iraquiano, região semiautônoma no Iraque, cidade que foi alvo de mísseis balísticos disparados pelo Irã durante a madrugada. Um míssil atingiu a região, mas não alcançou a base usada pelas forças americanas na região, segundo o Departamento de Defesa americano.

— Não entendi o que estava acontecendo, era um som diferente. Depois, o telefone parecia uma árvore de Natal, com tantas ligações e mensagens pipocando — contou Anderson.

Irbil é considerada uma cidade relativamente segura. Outdoors com anúncios de bebidas e lojas que vendem licor e uísque são comuns no bairro cristão de Ankawa, onde vive a maioria dos estrangeiros, incluindo Anderson, que trabalha para emissoras de TV e a imprensa local.

De vez em quando, há comunicados do governo, veiculados na mídia, para as pessoas não saírem de casa, por causa de ameaças de atentados terroristas. Mas isso, hoje, é raro. O ataque foi mais sentido em Bardarash, a 80 quilômetros de Irbil. O míssil caiu perto da cidade, quebrando janelas de vidro.

— Estão torcendo para não haver nenhum outro ataque e a situação esfriar — disse o jornalista curdo Baxtiyar Goran, que mora em Bardarash.

Em Bagdá, muitos iraquianos também sentiram uma forte apreensão.

— Vários helicópteros americanos sobrevoaram a capital durante a madrugada, em baixa altitude — contou o designer Ahmed Albordi, de 25 anos.

O Iraque, onde a invasão americana que derrubou Saddam Hussein em 2003 levou ao poder a maioria xiita, vive a situação incômoda de ter como principais aliados o Irã e os Estados Unidos, rivais mortais. Com a tensão da última semana, na qual iranianos e americanos fizeram ataques não autorizados em seu território, o país se viu sob a perspectiva de ser o principal palco de uma guerra aberta entre os dois sócios incômodos. No fim de semana, uma resolução do Parlamento pediu a saída dos militares americanos.

— Pedimos aos dois lados que pratiquem a autocontenção, mantenham a cabeça fria, respeitem acordos internacionais, respeitem o Estado iraquiano e as decisões de seu governo, e deixem para trás essa crise que ameaça o país, a região e o mundo com uma guerra aberta — disse nesta quarta o primeiro-ministro Adel Abdul Mahdi.

Mahdi está no cargo interinamente, depois de pedir demissão por causa de protestos populares que eclodiram em outubro contra a corrupção da classe política, o desemprego e a falta de serviços públicos.

Muitos iraquianos temem que o conflito entre os Estados Unidos e o Irã ofusque os protestos.Desde outubro, centenas deles vêm fazendo manifestações em Bagdá e em outras cidades, incluindo Basra, Nassíria e Karbala, pedindo mais democracia e uma reforma do sistema eleitoral. A repressão das forças de segurança iraquianas e de milícias apoiadas pelo Irã deixou mais de 500 mortos e milhares ficaram feridos.

— Somos contrários a qualquer tipo de presença estrangeira no Iraque porque queremos um país soberano — diz a estudante Amina Alradi, de 20 anos. — Parece que isso vai demorar a acontecer, já que a influência do Irã vai ficando cada vez mais clara.

Amina ficou com medo de sair de casa nos últimos dias, mas nesta quarta-feira voltou à praça Tahir, no centro de Bagdá, palco dos protestos. Muitos estão acampando no local. Boa parte prefere não voltar para casa nem para tomar banho. Eles utilizam as instalações do comércio e hotéis das proximidades. As refeições são feitas na própria praça, com doações de alimentos feitas por simpatizantes da causa.

— A disputa entre os Estados Unidos e o Irã pode resultar em mais conflito e repressão dentro do Iraque — diz o fotógrafo Mohamed Ala, de 22 anos, que participa dos protestos em Bagdá. — Em outros países, pouca gente tem ideia da extensão da influência iraniana no Iraque. Com as agressões dos Estados Unidos, as milícias xiitas e o próprio governo iraquiano podem se sentir na berlinda e atacar os manifestantes ainda mais.

O ataque americano que matou o general Qassem Soleimani, chefe das Forças Quds, unidade de elite da Guarda Revolucionária iraniana, matou também o iraquiano Abu Mahdi al-Muhandis, vice-comandante das Forças de Mobilização Popular (FMP), coalizão de milícias xiitas pró-Irã formadas em 2014 para combater o Estado Islâmico e depois incorporadas às forças de segurança do país.

O assassinato de al-Muhandis fez crescer o sentimento anti-EUA no Iraque, justamente no momento em que o Irã era alvo dos protestos populares.