Título: A difícil libertação da teologia
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Fonte: Jornal do Brasil, 19/04/2005, Internacional, p. A8

Na vida como na morte, João Paulo II foi um espetáculo mediático que revolucionou a imagem da Igreja. Agora que o espetáculo terminou, é tempo de refletir sobre o legado do papa e os desafios com que a Igreja Católica se confronta. Quando Karol Wojtyla iniciou o seu pontificado, a Igreja debatia-se com três problemas. A questão da modernidade: como interiorizar os valores da modernidade como a liberdade, os direitos humanos e a democracia. A questão ecumênica: quais as possibilidades e os limites do diálogo com outras religiões. A questão social: como articular a evangelização com a promoção humana em sociedades onde as desigualdades sociais não cessam de aumentar. Estas questões estiveram no centro do Concílio Vaticano II (1962-65) e dominaram os debates teológicos subsequentes entre aqueles para quem o Vaticano II tinha ido longe demais e aqueles para quem o Vaticano II tinha de ser prosseguido. A eleição de João Paulo II significou a vitória dos conservadores. A modernidade foi tratada de modo contraditório. No nível externo, os valores foram abraçados como pedras basilares da luta anticomunista. Modernidade tornou-se sinônimo de capitalismo e a Igreja identificou a sua mensagem com a de um sistema econômico (encíclica Centesimus Annus).

A posição selou a aliança de Karol Wojtyla com Reagan e Thatcher, parceiros na revolução conservadora dos anos 80. No nível interno, a questão da modernidade foi suprimida: democracia e liberdade são para vigorar na sociedade, não na Igreja. Esta, para ser fiel à sua missão, deve continuar a ser uma monarquia absoluta, centrada no papa e na Cúria. O povo de Deus só existe na comunhão com a hierarquia. Assim: exacerbou-se o centralismo, com o esvaziamento do Sínodo dos Bispos; dezenas de religiosos e teólogos foram silenciados por ousarem abordar questões proibidas: sacerdócio das mulheres, celibato, uso de contraceptivos, aborto, novas fronteiras da biologia. Os jesuítas, entre quem soprava forte o vento da renovação, foram fustigados (com a substituição do Superior Geral e a proibição da Congregação Geral de 1981). Pelo contrário, à Opus Dei ¿ conhecida pelo conservadorismo teológico ¿ foi confiada a tecnologia institucional do restauracionismo, até ser convertida em prelatura pessoal do Papa.

A contradição entre o tratamento interno e externo dos valores da modernidade passou despercebida do grande público pela maestria com que o papa reduziu a abertura da Igreja à democratização da sua imagem mediática. E o mesmo se passou com a questão econômica. Devido à recusa do pontífice de qualquer abertura dogmática ou teológica, o diálogo inter-religioso se resumiu aos espetáculos dos encontros ecumênicos. O mesmo se passou com a questão social, sendo que aqui a virulência conservadora do pontificado atingiu o paroxismo. Tratou-se de uma repressão brutal da Teologia da Libertação. Esta corrente teológica, assente na opção pelos pobres ¿ ¿se Deus é Pai tem por missão tirar os seus filhos da miséria¿ ¿ ganhava terreno na América Latina, continente onde vive metade dos católicos do mundo, e traduziu-se num novo catolicismo popular que envolvia clérigos e leigos na luta social e política contra a injustiça social. É hoje sabido que Karol se serviu de informações da CIA ¿ sua aliada na luta contra o comunismo ¿ para acusar bispos e padres de subversão marxista, suspendendo-os ou forçando-os a resignar.

Agora que terminou o espetáculo, a Igreja confronta-se com as mesmas questões de 1978 e está em piores condições para lhes dar uma resposta positiva. A Igreja não se deixará iludir pela adesão dos jovens a João Paulo II. É certo que o adoravam, mas estariam provavelmente tão dispostos a seguir na prática os seus ensinamentos conservadores como os ensinamentos revolucionários de Che Guevara, colado ao peito das suas t-shirts. Muita da energia pós-conciliar para libertar a teologia perdeu-se. A verdade é que os grandes temas ¿ democracia interna, injustiça social, sexualidade, discriminação ¿ têm de voltar a ser postos na mesa. Sem isso, é duvidoso que a Igreja possa continuar a ter pretensões de ser o testemunho vivo de Cristo no mundo em movimento.