O Globo, n. 31567, 10/01/2020. País, p. 4

Humor liberado

Carolina Brígido
André de Souza


Um dia após o desembargador Benedicto Abicair, do Tribunal de Justiça do Rio, censurar a veiculação do especial de Natal da produtora Porta dos Fundos, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, concedeu ontem uma liminar à Netflix autorizando a volta da exibição do programa, que retrata satiricamente Jesus Cristo como homossexual. O ministro ponderou que sua decisão não desrespeita a fé cristã, cujos valores são fortes o suficiente para não serem abalados por uma sátira.

“Não se descuida da relevância do respeito à fé cristã (assim como de todas as demais crenças religiosas ou a ausência dela). Não é de se supor, contudo, que uma sátira humorística tenha o condão de abalar valores da fé cristã, cuja existência retrocede a mais de 2 mil anos, insculpida na crença da maioria dos cidadãos brasileiros”, escreveu o ministro.

Toffoli também lembrou que o plenário da Corte tem reforçado “a plenitude do exercício da liberdade de expressão como decorrência imanente da dignidade da pessoa humana e como meio de reafirmação/potencialização de outras liberdades constitucionais”.

O presidente do tribunal concedeu ainda liminar em outro recurso da Netflix, contra a decisão do desembargador Cezar Costa, também da Justiça do Rio. Em dezembro, o magistrado negou um pedido para suspender o especial de Natal, mas determinou que a empresa incluísse no início do programa e em peças publicitárias “um aviso de gatilho de que se trata de uma sátira que envolve valores caros e sagrados da fé cristã”.

No recurso apresentado ao STF, a Netflix classificou a decisão como “censura judicial” e considerou a revogação necessária para resguardar a liberdade de expressão. Toffoli analisou o caso porque, como presidente da Corte, é responsável por decisões urgentes durante o recesso do tribunal. Em fevereiro, quando o STF retomar as atividades, o processo será enviado para o gabinete do ministro Gilmar Mendes, sorteado relator do processo, que poderá manter a decisão de Toffoli ou revogá-la.

Livre escolha

No recurso, a Netflix argumentou ainda que o desembargador Benedicto Abicair desrespeitou decisões tomadas pelo próprio STF que preservaram o direito à liberdade de expressão. “Não há dúvidas de que a recalcitrância da prática da ‘censura judicial’ representa hoje uma das maiores ameaças às liberdades comunicativas no cenário nacional”, diz trecho do pedido da plataforma de streaming, destacando que a liberdade de expressão é “alicerce fundamental do estado democrático de direito”.

A empresa também ressaltou que seus assinantes são livres para escolher o que querem assistir, contando inclusive com mecanismo de controle para os pais impedirem os filhos de verem determinados conteúdos, e lembrou que a liberdade de expressão não protege apenas opiniões que são majoritárias dentro da sociedade. “Nesse contexto, a simples circunstância de que a maioria da população brasileira é cristã não representa fundamento suficiente para suspender a exibição de um conteúdo artístico que incomoda este grupo majoritário”, argumentou.

A decisão de Abicair foi tomada no início da tarde de anteontem, em recurso movido pela Associação Centro Dom Bosco de Fé e Cultura. O desembargador defendeu que não era possível decidir ainda se houve incitação ao ódio público por parte da produtora e “com quem está a razão”, mas que para “acalmar os ânimos” da sociedade entendeu ser “mais adequado e benéfico” suspendera exibição do especial. O magistrado determinou ainda a suspensão de trailer se qualquer alusão publicitária ao filme.

Divulgado no ano passado, o especial de Natal do Porta dos Fundos gerou críticas de grupos religiosos. No programa, Jesus, que é interpretado pelo ator Gregório Duvivier, namora Orlando, vivido por Fabio Porchat. Após a repercussão do programa, a sede da produtora, no Rio, foi atacada com coquetéis molotov.

Na tarde de ontem, o Porta dos Fundos se posicionou nas redes sociais a respeito da decisão de Abicair. A produtora afirmou ser contra qualquer “ato de censura, violência, ilegalidade, autoritarismo e tudo aquilo que não esperávamos mais ter de repudiar em pleno 2020”. “Nosso trabalho é fazer humor e, a partir dele, entreter e estimular reflexões. Para quem não valoriza a liberdade de expressão ou tem apreço por valores que não acreditamos, há outras portas que não a nossa. Seguiremos publicando nossos esquetes todas as segundas, quintas e sábados em nossos canais”, declarou a produtora.

“A simples circunstância de que a maioria da população brasileira é cristã não representa fundamento suficiente para suspender a exibição de um conteúdo artístico que incomoda este grupo majoritário” Netflix, em pedido para suspender censura a especial.