O Globo, n. 31567, 10/01/2020. Mundo, p. 19

Suspeita sobre o Irã



Os primeiros-ministros do Canadá, Justin Trudeau, e do Reino Unido, Boris Johnson, afirmaram que informações de fontes de inteligência indicam que o Boeing da Ukraine International Airlines que caiu em Teerã foi derrubado por um míssil terra-ar do Irã, provavelmente por engano. Em entrevista, Trudeau pediu ampla investigação internacional sobre a queda do avião. Entre as 176 vítimas, 63 eram cidadãos canadenses. O governo iraniano disse que países que tinham cidadãos na aeronave poderão acompanhar as investigações, mas negou que tenha feito o disparo. EUA e Canadá confirmaram o envio de técnicos.

O primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, afirmou ontem ter recebido informações de “múltiplas fontes de inteligência” que indicam que o Boeing 737-800 da companhia Ukraine International Airlines (UIA) foi derrubado por um míssil terra-ar do Irã, provavelmente de “forma não intencional”. O premier britânico, Boris Johnson, também divulgou um comunicado afirmando ter as mesmas informações.

Em entrevista, Trudeau defendeu uma ampla investigação internacional sobre a queda do avião, ocorrida no início da manhã de quarta-feira. A aeronave caiu perto do Aeroporto Internacional de TeerãImã Khomeini com 176 pessoas a bordo. Ninguém sobreviveu. Das vítimas, 63 eram cidadãos canadenses, e a maior parte delas tinha dupla nacionalidade iraniana.

Segundo o premier, tudo indica que as caixas-pretas vão permanecer no Irã — Teerã havia se negado inicialmente a fornecer os equipamentos para a Boeing, mas já sinalizou que pode pedir ajuda ao exterior. Trudeau disse acreditar que investigadores de outros países terão acesso aos dados, e deixou claro que seu governo “não vai descansar” até que obtenha respostas. Apesar das afirmações, o premier canadense considerou “cedo” para apontar culpados ou chegar a conclusões.

Horas depois, o porta-voz da Chancelaria iraniana, Abbas Mousavi, pediu ao governo do Canadá que compartilhe seus dados de inteligência com Teerã. Da parte do governo, o porta-voz Ali Rabiei afirmou que países que tinham cidadãos na aeronave poderão acompanhar a investigação — ele ainda pediu que a Boeing mande representantes para ajudar na análise das caixas pretas. Contudo, criticou as acusações de que o avião teria sido atingido por um míssil, dizendo que isso não passa de “guerra psicológica”. Por causa das sanções americanas, a Boeing precisa de uma autorização do governo dos EUA para participar das investigações.

A declaração do premier canadense veio logo depois de autoridades do governo dos EUA afirmarem à imprensa que acreditam na hipótese de que a aeronave tenha sido abatida pelo sistema de defesa antiaérea iraniano por acidente. Sem se identificar, um funcionário afirmou que foram identificados por satélite dois lançamentos de mísseis perto do horário em que o Boeing 737-800 caiu, seguidos por evidências de uma explosão. Segundo o New York Times, a inteligência dos EUA interceptou comunicações no Irã confirmando que um míssil teria derrubado o avião.

As informações não foram confirmadas oficialmente pelo governo. O presidente Donald Trump disse a jornalistas mais cedo que “alguém pode ter cometido um erro”, e afirmou ter suspeitas de que “algo muito terrível pode ter acontecido”.

O NewYork Times as autoridades iranianas convidaram a Junta Nacional de Segurança dos Transportes dos EUA para ajudar na investigação, e o órgão confirmou ter indicado já um representante. O Canadá também informou que participará do inquérito. Pelas normas internacionais sobre acidentes aéreos, o Irã tem o direito de comandar a investigação e de negar ou autorizar a participação de outros países.

Dezenas de voos no ar

O voo PS752 da UIA decolou às 6h12 de quarta-feira (23h42 de terça-feira no horário de Brasília) de Teerã, com destino a Kiev. A decolagem aconteceu quase cinco horas depois do ataque iraniano a bases iraquianas que abrigam soldados americanos, ocorrido à 1h20 de quarta-feira, no horário local. A hipótese aventada pelos funcionários americanos é que a aeronave tenha sido confundida com um míssil ou drone dos EUA, que estaria agindo em represália à operação no Iraque.

O governo da Ucrânia disse que quer fazer buscas no local da queda para verificar se há destroços de um míssil russo usado pelos militares iranianos. Uma equipe de especialistas ucranianos chegou a Teerã ontem antes do amanhecer para participar da investigação.

Ontem, a Organização da Aviação Civil (OAC) iraniana reiterou a versão inicial de que o avião fez meia-volta para retornar ao aeroporto. O chefe da OAC, Ali Abedzadeh, considerou “ser cientificamente impossível” que o avião tenha sido abatido por um míssil, uma vez que já estaria voltando ao aeroporto, e alegou que dezenas de aviões nacionais e estrangeiros estavam sobrevoando o território do país naquele momento.

Certezas e especulações sobre o desastre

Como deveria ser o voo?

Muito usado pela diáspora iraniana para visitar o país, especialmente pelo custo e conexão fácil, o voo ligando Teerã e Kiev leva cerca de quatro horas. Na rota, a aeronave normalmente sai do portão de embarque às 5h15, horário local, e decola rumo ao Noroeste do país, alcançando uma altitude de cruzeiro de 36 mil pés, pouco menos de 11 mil metros. Em uma viagem usual, o avião da Ukraine International atravessa a fronteira com a Turquia em direção ao Mar Negro. Há alguns anos o voo era mais curto, mas, com a anexação russa da Crimeia e o conflito no Leste ucraniano, passou a fazer um desvio considerável.

Como era a aeronave?

O Boeing 737-800 da Ukraine International Airlines, prefixo UR-PSR, tinha três anos e sete meses de uso e não teve problemas relatados pela empresa. A última inspeção foi em 6 de janeiro. Essa aeronave era usada em voos para cidades como Milão, Paris, Londres, Zvartnots, na Armênia, e Teerã. Desde seu lançamento, em 1997, o Boeing 737-800 é considerado uma aeronave segura, com oito acidentes graves, a maior parte provocada por erros da tripulação ou fatores externos. Este foi o caso do voo 1907 da Gol, que colidiu com um jato Legacy, da Embraer, em 29 de setembro de 2006. As 154 pessoas abordo morreram.

O que se sabe oficialmente?

O voo 752 da Ukraine International decolou às 6h12 da última quartafeira, 23h42 de terça-feira no Brasil. Nos dois minutos seguintes, a aeronave não apresentou problemas e foi liberada para subir até 26 mil pés, ou 7.900 metros. Porém, quando estava a 7.915 pés, ou 2.416 metros, desapareceu dos radares perto da cidade de Parand, nos subúrbios da capital iraniana. Pouco depois, caiu em um terreno acerca de 15 km do aeroporto, explodindo ao atingir o chão às 6h18. Testemunhas dizem ter visto a aeronave em chamas ainda no ar. As autoridades iranianas dizem que a tripulação não emitiu qualquer mensagem de alerta.

O que dizem países ocidentais?

Inicialmente, as agências de informação ocidentais falavam em acidente. Ainda na quarta-feira, começaram a surgir especulações na internet de que o Boeing teria sido atingido por um míssil, o que levou a Ucrânia, que já tem investigadores em Teerã, a pedir para verificar se haveria destroços de foguetes no local da queda. Ontem, funcionários anônimos do governo dos EUA e os governos do Canadá e do Reino Unido disseram ter informes de inteligência que indicam que o avião foi atingido por um míssil, possivelmente disparado por engano, no início da decolagem. Satélites militares teriam detectado os disparos de dois foguetes e uma grande explosão. Segundo essa hipótese, o avião teria sido confundido com um projétil americano ou drone. Cerca de cinco horas antes, o Irã lançara mísseis contra posições americanas no Iraque, uma resposta ao assassinato do general Qassem Soleimani, em 3 de dezembro. Funcionários americanos especulam que o sistema de defesa antiaérea SA-15, de fabricação russa, teria sido levado para perto do aeroporto justamente por medo de ataques dos EUA.

O que diz o Irã?

A primeira informação das autoridades iranianas, logo depois da queda, é de que teria ocorrido uma falha técnica na aeronave. Indo além, a Organização da Aviação Civil (OAC) iraniana levantou a hipótese de que tenha havido um incêndio em uma das turbinas, o que teria levado o piloto a perder o controle do Boeing. Dados preliminares iranianos mostram ainda que o avião fez uma curva inesperada à direita e tentou retornar ao aeroporto, sinalizando uma “falha catastrófica”. Ontem, o Irã chamou as alegações de que a aeronave teria sido abatida por um míssil de “guerra psicológica” e informou ter chamado todos os países que tinham cidadãos a bordo para participar das investigações.