O Globo, n. 31567, 10/01/2020. Sociedade, p. 22

Menos espera para jovens transgênero

Adriana Mendes
Constança Tatsch


Larissa Sanchez tinha 13 anos quando procurou um psiquiatra por causa de uma depressão profunda. Na quinta consulta, já tinha a conclusão: era transexual. Ainda assim, precisou esperar muito tempo pelo tratamento com hormônios, e mais ainda pela cirurgia, que deve acontecer no meio deste ano.

— Sei que minha vida não vai mudar completamente porque vou me operar, mas é tirar uma pedra do meu caminho. Tem a ver com meus relacionamentos, mas o problema principal é comigo mesma: o incômodo com o meu corpo, uma fobia, não consigo olhar nem tocar. Vai ser um grande alívio me olhar no espelho e pensar: “Finalmente me adequei”.

Hoje uma mulher trans de 20 anos, ela ainda era criança quando começou a sofrer por não se identificar com seu gênero. “Ou eu me descobria, ou eu me matava”, conta:

— Eu sabia que era diferente desde sempre, mas meu vocabulário de criança só chegava à palavra gay. Então fui crescendo gay, mas não era apenas um menino que gostava de meninos: me sentia de fato uma menina.

Para diminuir o sofrimento da espera de crianças, adolescentes e jovens como Larissa, o Conselho Federal de Medicina (CFM) estabeleceu novas regras para cirurgia de afirmação de gênero, como é chamada tecnicamente, alterando a idade mínima de 21 para 18 anos para o procedimento. Para terapias hormonais, a idade mínima passou de 18 para 16 anos.

Resoluções atualizadas

A resolução, publicada no Diário Oficial da União de anteontem, é uma atualização de três resoluções anteriores do conselho. As mudanças foram discutidas durante dois anos por uma equipe de especialistas.

— A (mudança na) idade é uma questão de se adequar à maioridade civil, que é de 18 anos — afirmou o relator, o psiquiatra Leonardo Luz.

Para a endocrinologista Elaine Frade Costa, representante da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia na produção do conteúdo, a resolução traz três mudanças principais. A primeira é a inclusão de todos os procedimentos, inclusive tratamentos hormonais, na norma. A segunda é individualizar o tratamento, desobrigando a equipe de realizar dois anos de psicoterapia anterior à cirurgia, podendo ser abreviado caso o paciente seja avaliado como preparado. E, por último, o aspecto mais importante, que é a inclusão de crianças e adolescentes.

— Na criança não se faz nada, só acompanhamento com a equipe de saúde mental —diz. —Quando chega a puberdade, caso haja manifestação da incongruência de gênero, pode ser feito um bloqueio hormonal, que é reversível. E agora, a partir dos 16 anos, nos centros de pesquisa, fica permitida a terapia hormonal cruzada, que representa a transformação corporal com medicamentos para a feminização ou masculinização.

Anteriormente, as terapias hormonais estavam definidas apenas por meio de pareceres técnicos do conselho, não havia uma regulamentação.

Para o psiquiatra Alexandre Saadeh, que participou da comissão e coordena o Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Instituto de Psiquiatria da USP, a diminuição da idade para tratamentos é fundamental.

— Para alguns, parece que é tudo bobagem, querem aparecer, mas na verdade é um grande sofrimento. É você ter um corpo com o qual não se identifica. O que as crianças e adolescentes ganham com o acompanhamento é fenomenal.

Em relação às cirurgias, a nova resolução retira o caráter experimental de procedimentos como mastectomia bilateral (remoção da mama) e histerectomia (remoção do útero), mas mantém como experimental a neofaloplastia (que cria um pênis a partir de pele de outras partes do corpo) —essa, portanto, continua sendo feita apenas em centros de pesquisa.

Atualmente, apenas cinco hospitais públicos no país são habilitados para fazer cirurgias em transgêneros. Esses, que também são centros de pesquisa, já passam a seguir as novas normas.

Para os hospitais vinculados ao Sistema Único de Saúde (SUS), as regras só passam a valer após a avaliação do Ministério da Saúde. A representante da pasta, Maria Inez Gadelha, disse ao G1 que as novas normas serão analisadas pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS. Não há prazo definido para que isso ocorra.

— A resolução do CFM não é automática para o SUS. O SUS vai ver se se adequará ou não a ela — afirma Gadelha. —Outros órgãos e ministérios têm que ser ouvidos e envolvidos. Há um aspecto social muito forte nisso.

O que muda com as novas normas

Mais jovens

A idade mínima para o procedimento cirúrgico de mudança de sexo foi de 21 para 18 anos; para terapias hormonais, a idade mínima passou de 18 para 16 anos

Padrões de atendimento

Antes dos 16 anos, o acompanhamento deve ser feito por uma equipe multidisciplinar. Quando se manifesta o desejo de mudança de gênero na criança, a recomendação é que seja feito apenas o acompanhamento, sem nenhum medicamento

Bloqueio hormonal

Quando há manifestação da incongruência de gênero, pode ser realizado no início da puberdade. Nas meninas, a faixa é dos 8 aos 13, nos meninos, dos 9 aos 14. O bloqueio é reversível

Transformação corporal

A terapia hormonal cruzada, que representa a mudança corporal com medicamentos para a feminização ou masculinização, deve ser adotada a partir dos 16 anos

Equipes multidisciplinares

A nova norma detalha que as equipes de atendimento deverão ser compostas por psiquiatras, endocrinologistas, ginecologistas, urologistas e especialista em cirurgia plástica. Nos casos em que o paciente tiver menos que 18 anos, será exigida a presença de um pediatra. Além disso, é vedada a realização de procedimentos hormonais e cirúrgicos em pessoas com diagnóstico de transtornos mentais

Nomeclatura mundial

Expressões internacionais relacionadas ao tema foram reconhecidas na nova norma, como “identidade de gênero”, ou seja, o reconhecimento de cada pessoa sobre seu próprio gênero; e “afirmação de gênero”, que é o procedimento terapêutico multidisciplinar para a pessoa que necessita adequar seu corpo à sua identidade de gênero por meio de hormonioterapia e/ou cirurgias