O Globo, n. 31568, 11/01/2020. Opinião, p. 2

Juiz de garantias esbarra na vida real



A sanção presidencial do pacote anticrime mantendo a criação do juiz de garantias, feita por emenda no Congresso, criou mais uma rusga entre Bolsonaro e o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, que havia pedido este veto. A instituição de um magistrado para acompanhar o inquérito, que será julgado por outro juiz, se inclui entre iniciativas surgidas no Legislativo como uma espécie de troco à Lava-Jato, força-tarefa na qual atuou Moro.

Mais do que isso, trata-se de evitar que se repita a eficácia com que promotores, Polícia Federal e Justiça desmantelaram um enraizado e poderoso esquema de corrupção instalado na Petrobras, com a implicação de vários políticos. Seria uma reação de autodefesa de parte do Legislativo. Os favoráveis à criação desta nova figura — existente em vários países — consideram que a duplicidade de magistrados aumentará a qualidade do trabalho jurisdicional.

Moro marcou sua posição perante Bolsonaro, evitou um choque frontal, mas a discussão continuará. É certo que não será simples a aplicação da ideia da criação do novo juiz. Os legisladores estavam muito otimistas, tanto que estabeleceram a data de 23 de janeiro para começar a vigorar o dispositivo de mais este juiz. O presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, à frente do Conselho Nacional de Justiça, deve propor um prazo maior. Toffoli é um dos que apoiam a criação da dupla magistratura.

As dificuldades práticas para a criação da figura de um juiz que acompanha o recolhimento de provas e de tomadas de depoimentos, por exemplo, para que um segundo dê o veredicto supostamente com maior isenção, surgem em análises técnicas do assunto. Nota redigida por câmaras especializadas da Procuradoria-Geral da República, e enviada ao procurador Augusto Aras, propõe que o juiz de garantias só valha para os novos processos. Não atue em Varas especializadas, como as que julgam crimes contra a mulher (Lei Maria da Penha), nem em tribunais colegiados que venham a ser criados para tratar de crimes de milícias e grupos paramilitares. Tampouco nas Cortes superiores: STJ e STF, em que não faria sentido mesmo, até pela falta de ministros. A escassez de juízes para a duplicação do trabalho não foi considerada por defensores da mudança. O exemplo citado como solução do problema, o Departamento de Inquéritos Policiais (Dipo) da Justiça paulista, teve de se circunscrever à capital por falta de gente. Não há mágica possível, e um dos Poderes Judiciários mais caros do mundo (1,2% do PIB, contra 0,14% nos EUA) terá de ficar ainda mais caro. A situação da Justiça de São Paulo, o estado mais rico da Federação, dá ideia do que será necessário investir, numa fase de grave crise fiscal, para se cumprir o que estabelece a emenda feita no Congresso ao pacote anticrime: das 320 comarcas, 40 contam com apenas um juiz. A internet ajudaria, não houvesse o empecilho de parte dos processos não estar digitalizada. Imagine-se no resto do país. (...)