O Estado de S. Paulo, n. 46552, 01/04/2021. Notas & Informações, p. A3

O preço da liberdade é a eterna vigilância



O firme repúdio dos comandantes militares à insolente tentativa de Jair Bolsonaro de envolver as Forças Armadas em seu projeto autoritário de poder foi a derradeira demonstração de que o presidente não conta com mais ninguém relevante – apenas com seus fanáticos camisas pardas bolsonaristas – para embalar seus devaneios golpistas.

Bolsonaro há tempos vem tentando caracterizar as Forças Armadas como milícias a seu serviço, com o óbvio objetivo de intimidar seus opositores. Mas nos últimos dias, diante da percepção de que seu governo vem perdendo sustentação, o presidente resolveu pressionar os chefes das Forças Armadas a escolher um lado – ou ele ou a Constituição.

Os militares obviamente escolheram a Constituição. Rejeitaram de pronto a ideia – expressa pelo novo ministro da Defesa, Walter Braga Netto, na reunião em que os comandantes foram demitidos por ordem de Bolsonaro – de que é preciso “realinhar” as Forças Armadas ao presidente.

Ora, a Constituição estabelece que as Forças Armadas são instituições de Estado, razão pela qual não podem ser “alinhadas” ao presidente. Mas Bolsonaro, sendo o mais antirrepublicano dos presidentes da República na história nacional, considera-se senhor do Estado, tendo assim o poder de submetê-lo integralmente a seu tacão e de explorá-lo para seu proveito pessoal.

Bolsonaro julga que, por ser presidente, deve ser tratado com subserviência por todos, a começar pelos chefes militares, que, segundo entende, devem lhe dar apoio político explícito. O capitão da reserva, desligado do Exército depois de uma trajetória de insubordinação e sedição, quer ser visto agora como generalíssimo.

Mas Bolsonaro não é apenas um mau militar a quem infelizmente coube o comando supremo das Forças Armadas; é um mau homem público, que vive a repetir que “o presidente sou eu” para ver se ele mesmo se convence desse absurdo. Sem a autoridade natural dos líderes que respeitam a inteligência alheia e as leis, Bolsonaro pretende impor seu poder na marra.

Não se sabe para quê. É um governo sem rumo, que conduziu criminosamente o País à tragédia de mais de 300 mil mortos numa pandemia, sem falar no colapso do sistema de saúde. Sua única competência tem sido o aparelhamento da estrutura estatal para defender os interesses do clã Bolsonaro. Vive de criar tumulto e estimular o golpismo para desviar a atenção de sua monumental inaptidão para o cargo.

Mas a estratégia do caos não tem funcionado mais. Muitos de seus antigos apoiadores, militares e civis, já não escondem o arrependimento. Empresários não o levam mais a sério. Um deles, ouvido recentemente pelo Estado, disse que não é possível aprofundar nenhum assunto com Bolsonaro porque ele “só faz piada e fala palavrão”. Por isso, banqueiros, donos de empresas e executivos têm preferido procurar os presidentes da Câmara, Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo Pacheco, para encaminhar suas preocupações.

Bolsonaro já não pode contar nem mesmo com o apoio integral do Centrão, que hoje coloniza seu governo. Lira já advertiu o presidente sobre o risco de impeachment, e Pacheco disse que o Congresso “não vai transigir com qualquer iniciativa que vise a algum retrocesso no Estado Democrático de Direito”.

Mas Bolsonaro é incansável. Por intermédio de um bagrinho, tentou emplacar um projeto de lei que lhe daria a prerrogativa de convocar “mobilização nacional” a pretexto de combater a pandemia. Nessa mobilização, o presidente ganharia poder para intervir nos Estados e derrubar as medidas de distanciamento social, além de passar a controlar as Polícias Militares.

Se aprovado, tal projeto afrontaria o princípio da Federação inscrito na Constituição. Conforme o artigo 60, a Federação é cláusula pétrea, ou seja, não pode ser alterada nem por emenda constitucional. Ademais, intervir nos Estados ao arrepio da Constituição é ato qualificado como crime de responsabilidade pelo artigo 6.º da Lei 1.079/50, a Lei do Impeachment.

Para liberticidas contumazes, contudo, leis nada dizem. Por isso, mais do que nunca, o preço da liberdade segue sendo a eterna vigilância.