Correio Braziliense, n. 21418, 06/11/2021. Política, p. 2

Um freio na farra das emendas de relator

Jorge Vasconcellos


A ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal (STF), ordenou, ontem, que seja suspensa, “integral e imediatamente”, a execução das chamadas emendas de relator no orçamento de 2021. A magistrada é relatora de ações protocoladas pelos partidos Cidadania, PSB e PSol, que apontam falta de transparência na destinação das verbas e indícios de compra de apoio político pelo governo federal. Também conhecidas como RP9, essas emendas são usadas para financiar obras, serviços e equipamentos em redutos de parlamentares da base aliada.

O despacho de Rosa Weber é liminar, ou seja, tem caráter temporário e vale até o julgamento definitivo das ações pelo plenário do Supremo. A ordem é direcionada ao Senado, à Câmara, à Presidência da República, à Casa Civil da Presidência da República e ao Ministério da Economia.

A magistrada ordenou, ainda, que todas as demandas de parlamentares relativas à distribuição de emendas de relator sejam registradas, num prazo de 30 dias, em plataforma eletrônica centralizada do órgão central do Sistema de Planejamento e Orçamento Federal. Segundo o despacho, essa providência é necessária para  assegurar “amplo acesso público, com medidas de fomento à transparência ativa, assim como sejam garantidas a comparabilidade e a rastreabilidade dos dados referentes às solicitações/pedidos de distribuição de emendas e sua respectiva execução, em conformidade com os princípios da publicidade e transparência”.

Rosa Weber também deu prazo de 30 dias para que “seja dada ampla publicidade, em plataforma centralizada de acesso público, aos documentos encaminhados aos órgãos e entidades federais que embasaram as demandas e/ou resultaram na distribuição de recursos das emendas de relator”.

A ministra criticou o sigilo que envolve esse tipo de emenda, que impede a identificação dos parlamentares beneficiados e outras informações importantes para conferir transparência e assegurar a correta aplicação dos recursos públicos. “Enquanto a disciplina normativa da execução das emendas individuais e de bancada (RP6 e RP7) orienta-se pelos postulados da transparência e da impessoalidade, o regramento pertinente às emendas do relator (RP9) distancia-se desses ideais republicanos, tornando imperscrutável a identificação dos parlamentares requerentes e destinatários finais das despesas nelas previstas, em relação aos quais, por meio do identificador RP9, recai o signo do mistério”, escreveu.

Segundo a ministra, “mostra-se em tudo incompatível com a forma republicana e o regime democrático de governo a validação de práticas institucionais por órgãos e entidades públicas que, estabelecidas à margem do direito e da lei, promovam o segredo injustificado sobre os atos pertinentes à arrecadação de receitas, efetuação de despesas e destinação de recursos financeiros, com evidente prejuízo do acesso da população em geral e das entidades de controle social aos meios e instrumentos necessários ao acompanhamento e à fiscalização da gestão financeira do Estado”.

Os três partidos protocolaram as ações no STF em junho, e a ministra dá o despacho no momento em que dados oficiais demonstram que o governo lançou mão de um grande volume de recursos de emendas do relator às vésperas da votação da PEC dos Precatórios.

 O texto-base da PEC foi aprovado na Câmara, em primeiro turno, na quinta-feira, pelo placar apertado de 312 votos a 144 — o mínimo necessário são 308. A votação em segundo turno está marcada para a próxima terça-feira.

Recorde

Conforme levantamento feito pela Associação Contas Abertas, com base em dados do Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (Siafi), apenas nos dias 28 e 29 de outubro, ou seja, na semana passada, foram empenhados cerca de R$ 909,7 milhões em emendas do relator, como reserva para pagamento de benefícios em redutos eleitorais de parlamentares aliados. Nesse mesmo mês, houve um recorde em volume de recursos das RP9 empenhados no ano: R$ 2,9 bilhões.

As emendas de relator previstas no orçamento deste ano somam R$ 18,5 bilhões. Diferentemente das emendas individuais de deputados e senadores, elas não seguem critérios transparentes. Na prática, a destinação desses recursos é definida em acertos informais entre parlamentares aliados e o governo federal.  

O economista Gil Castello Branco, fundador e secretário-geral da Associação Contas Abertas, comemorou a decisão da ministra Rosa Weber. “O Supremo impediu o ‘jabá orçamentário bilionário’. O STF confirmou o que todos sabiam. As emendas do relator são inconstitucionais. O pior e mais promíscuo instrumento de barganha entre o Executivo e o Legislativo das últimas décadas foi, enfim, interrompido pelo STF.”


Aprovação da PEC a custo bilionário
Israel Medeiros


O governo federal liberou R$ 1,2 bilhão em emendas de relator um dia antes da votação da PEC dos Precatórios. O valor repassado a cada parlamentar teria sido de cerca de R$ 15 milhões, e o próprio presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), teria sido o responsável por coordenar as negociações, conforme reportagem do Estadão.
Ao jornal, o deputado Hildo Rocha (MDB-MA) disse que, enquanto esteve no plenário, o governo tentou utilizar o PDT como uma espécie de vitrine para atrair outros partidos de oposição, destinando aos parlamentares da legenda cerca de R$ 200 milhões em emendas. O Correio entrou em contato com o deputado, que confirmou as informações.

Outros parlamentares também alegaram ter ouvido rumores nos bastidores sobre compra de voto, como o deputado Fábio Trad (PSD-MS). Ele votou contra a proposta e disse não ter sido procurado para esse acordo. "Eu, desde o início dessa votação, me posicionei contra por várias razões. A principal é que prejudica professores, aposentados, pobres, pessoas doentes que aguardam há décadas para receber seus créditos", sustentou. "Não recebi nenhum tipo de pressão, abordagem, nada. Mas ouvir dizer, vários ouviram, sem nenhuma prova direta", acrescentou.

Para o cientista político Eduardo Grin, da Fundação Getulio Vargas (FGV), se confirmada a compra de votos, o escândalo contribui, ainda mais, para uma corrosão da democracia que, segundo ele, está sendo causada pelo governo do presidente Jair Bolsonaro. Ele explica que o chefe do Executivo não tem habilidade política para negociar, então, faz sentido, para o governo, liberar recursos e fazer acordos diretos.
"Como os precatórios, ele simplesmente trocou a negociação política pela compra de votos. O que acontece? Mais do que deteriorar a relação democrática, isso reverte a lógica de como funciona um sistema presidencial", comentou. "Nós não temos um parlamentarismo. Cabe ao governo negociar com sua base de apoio. Bolsonaro pode dizer: 'Garanta que não vou perder nas minhas pautas ou sofrer impeachment e, de resto, façam o que quiserem'."
Dificuldade

De acordo com o especialista, "o problema que essa lógica do governo de compra explícita de votos está gerando, fora a questão da corrupção, são os efeitos que isso vai causar no sistema político, bem significativo". "Em 2023, quem quer que seja o presidente, vai enfrentar muita dificuldade institucional por causa dos problemas que se criaram agora", frisou, referindo-se a uma eventual dependência do Centrão para garantir a governabilidade.