O Globo, n. 31589, 01/02/2020. País, p. 10

Ex-missionário nega que vá evangelizar índios
Leandro Prazeres


O ex-missionário evangélico e antropólogo Ricardo Lopes Dias, convidado para ocupar a coordenação-geral de índios isolados da Fundação Nacional do Índio (Funai), diz que, caso seja nomeado para o cargo, não vai promover a evangelização de indígenas.

— Minha atuação vai ser técnica. Não vou promover a evangelização de índios — afirmou Dias ao GLOBO. Em entrevista, Ricardo Lopes Dias confirmou que recebeu um convite do presidente da Funai, Marcelo Xavier, para ocupar o cargo, e que já aceitou o chamado. Sua nomeação, no entanto, ainda não aconteceu.

A coordenação-geral de índios isolados e de recente contato é um dos postos mais importantes na hierarquia da Funai. Ele é responsável pelo gerenciamento das 11 frentes de proteção etnoambienal e de 19 bases espalhadas pela Amazônia onde há registros sobre a presença de índios isolados ou contatados recentemente.

Esses indígenas são considerados os mais vulneráveis, por não terem proteção imunológica contra várias doenças e por habitarem terras cobiçadas por caçadores, garimpeiros e madeireiros. De acordo com a Funai, o Brasil tem 114 registros de índios isolados, isto é, aqueles que não mantêm contato com a sociedade envolvente, voluntariamente ou não.

Questionado se iria mudar a política de não contato adotada pelo governo brasileiro desde o final dos anos 1980, Ricardo Lopes Dias tentou evitar uma resposta concreta e se limitou a dizer que não vai "mudar o que vem dando certo".

De acordo com seu currículo na plataforma Lattes, Ricardo Dias é graduado em Antropologia, mestre em Ciências Sociais e doutor em Ciências Humanas e Sociais. Mais recentemente, atuava como professor em universidades ligadas a entidades evangélicas em São Paulo e em Goiás. No final dos anos 1990, foi missionário da entidade Missão Novas Tribos do Brasil, conhecida por seu trabalho de evangelização de indígenas.

Propagação de doenças

Em meados dos anos 1990, a entidade foi retirada de uma área no interior do Pará onde ela atuava junto a índios da etnia Zoé. Havia a suspeita de que missionários da entidade teriam sido responsáveis pela propagação de doenças que mataram indígenas até então recém-contatados. Uma investigação foi aberta, mas o caso acabou arquivado.

A possível chegada de Ricardo Lopes Dias ao posto só será possível porque, nesta semana, o presidente da Funai alterou o regimento interno da entidade e mudou os critérios exigidos à ocupação do cargo. Com a alteração, o posto, que só poderia ser ocupado por servidores públicos efetivos passou a poder ser exercido por pessoas de fora do serviço público, que é exatamente o caso de Ricardo Lopes Dias. A mudança foi criticada por lideranças indígenas, entidades que atuam na defesa dos direitos dos índios e levou a Defensoria Pública da União (DPU) a emitir um ofício em que expressa preocupação com a nomeação.

— Este é mais um dos absurdos desse governo, que tenta a todo custo impor a sua ideologia perversa de integração e assimilação dos povos indígenas. Colocar gente que não tem conhecimento, experiência e sensibilidade para lidar com essas populações isoladas é colocá-los numa situação de maior vulnerabilidade ainda, pois o perigo vem de quem tem o dever de proteger — disse Sônia Guajajara, coordenadora-executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).

O sócio-fundador do Instituto Socioambiental, Márcio Santilli, que foi presidente da Funai entre 1995 e 1996, também criticou a possibilidade de um ex-missionário ocupar o posto.

— Cabe à Coordenação de Índios Isolados da Funai garantir a sua proteção física e cultural, sendo impróprio e ilegal entregá-la a quem tem, por missão, destruir as suas identidades culturais e organizações sociais próprias — disse Santilli.

Em nota, a Defensoria Pública da União (DPU) afirmou que o "risco de uma nomeação que não atenda a critérios técnico sé a morte em massa de indígenas, decorrente de doenças a partir do contato irresponsável ou dos conflitos flagrantes com missões religiosas, madeireiros, garimpeiros, caçadores e pescadores ilegais".

Procurada, a Funai disse que não se manifestaria sobre eventuais indicações para cargos, mas que a coordenação geral de índios isolados é um posto de livre nomeação do presidente da entidade.

"Minha atuação vai ser técnica. Não vou promover evangelização de índios"

Ricardo Lopes Dias, ex-missionário, cotado para coordenação-geral de índios isolados da Funai

"É impróprio entregá-la a quem tem, por missão, destruir as identidades culturais (de indígenas)"

Márcio Santili, ex-presidente da Funai