O Globo, n. 31569, 12/01/2020. Mundo, p. 39

Reino Unido criado pelo Brexit inicia seu ano zero

Vivian Oswald


O Big Ben está em obras até 2021. De longe, vê-se apenas o mostrador do relógio mais famoso do mundo, que continua marcando as horas no alto da Torre Elizabeth, embrulhada por andaimes. As badaladas do carrilhão só podem ser ouvidas em ocasiões especiais, como foi o centenário do armistício da Primeira Guerra Mundial. Políticos conservadores defendem que o cartão postal do Reino Unido volte a tocar em dia 31 de janeiro, para anunciar o fim do casamento de quase cinco décadas do país com a União Europeia (UE). Mas há divergências. Os partidos se desentendem sobre o uso do monumento nacional neste momento em que a sociedade continua fraturada entre os defensores e os opositores da saída da UE. Para muitos, seria reverberar as diferenças, saudando a vitória de um dos lados. Essa é apenas uma das disputas a que os britânicos vão assistir daqui para frente: 2020 deve ser o ano zero do novo Reino Unido.

Respeitado o cronograma, a partir de fevereiro os britânicos estarão fora da UE. Isolam-se, perdem força na geopolítica mundial, tornam-se menores nas batalhas econômicas globais. Bancos, seguradoras e fundos que operam a partir dos arranha-céus da City, um dos principais centros financeiros da Europa, mudaram-se ou anunciarão em breve seu novo código postal. Muitos partiram para Frankfurt, Dublin, Luxemburgo e Lisboa. Estima-se que gastaram 4 bilhões de libras (quase R$ 21 bilhões) com planos de contingenciamento, assistência jurídica e deslocamento de pessoal para se preparar para o Brexit. A consultoria Ernest & Young fala em 7 mil postos de trabalho a menos na capital e na transferência de 1 trilhão de libras (R$ 5,3 trilhões) em ativos para o exterior.

As universidades tiveram de se mexer diante da perspectiva de perder os fundos oficiais da Comissão Europeia para pesquisa e inovação. Oxford está abrindo uma subsidiária na capital alemã, núcleo do planejado Centro de Pesquisa Oxford-Berlim. Teme-se a perda dos cérebros por trás das pesquisas em curso no país. Não à toa, a ministra do Interior, Priti Patel, anunciou que vai dobrar o número de opções de vistos rápidos para os programas de bolsas de investigação científica.

A questão não é só financeira. O novo Reino Unido quer entender sua nova maneira de ver o mundo e de se enxergar dentro dele. A academia abriu cursos e cadeiras dedicados ao Brexit. Centros de estudos independentes surgem para que os especialistas possam se debruçar exclusivamente sobre o que acontecerá depois do processo de separação desencadeado há mais de três anos. O número de estudantes que buscam os cursos de política britânica aumentou.

— A história britânica agora tem de ser ensinada de outra maneira, sob outras perspectivas. É a era pós-colonial. Eles estão lançando um olhar crítico sobre o que é ser britânico — disse Tatiana Coutto, pesquisadora do Centro de Estudos Europeus e de Política Comparada do Instituto de Estudos Políticos de Paris, o SciencesPo.

Da rixa à história

Desde fevereiro de 2017, o Centro de Estudos do Brexit, da Universidade de Birmingham, prepara documentos de análise das perspectivas para o futuro, sobretudo no antigo reduto trabalhista que votou pelo Brexit e depois nos conservadores do premier Boris Johnson. O diretor do centro, Alex De Ruyter, afirmou ao Globo que a ideia é entender o impacto econômico do divórcio na cadeia produtiva da região.

Depois do Brexit, os britânicos precisarão negociar acordos comerciais mundo afora, inclusive com os próprios europeus, para encontrar o seu lugar no mapa. Para De Ruyter, será difícil chegar a entendimentos capazes de compensar a perda do acesso direto a um mercado de 450 milhões de habitantes como a Europa, em um mundo conturbado pela guerra comercial entre Estados Unidos e China.

— Quanto tempo levou para se firmar o acordo entre a UE e o Mercosul, 20 anos? Com o Japão foram nove — destaca.

O Brexit foi fruto de um referendo convocado pelo Partido Conservador, à época conduzido pelo então premier David Cameron, para resolver uma rixa interna da legenda. A votação foi atropelada pelo espírito da época internacional e acabou mudando a História do país.

O divórcio também muda o equilíbrio europeu. O Reino Unido atuava como contrapeso entre alemães e franceses e a sua saída deve atribuir mais poder à França de Emmanuel Macron, segundo Tatiana Coutto, em um momento em que a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), a aliança militar ocidental criada na Guerra Fria, se vê esvaziada pelos EUA de Donald Trump.

— A França é a principal potência militar da UE, que perderá a capacidade nuclear britânica e a principal frota naval. Macron disse que a Otan teve morte cerebral. E isso incomoda a Alemanha, que, diante do seu passado recente, até dá dinheiro para a aliança, mas não quer se envolver tanto — explica Coutto, que acrescenta: — A Europa vai ter que mostrar que aguentou o tranco.

O fator Escócia também entra na conta. Este novo país que surge independente da UE, como diriam os eleitores do Brexit, pode se transformar em um reino ainda mais desunido. Os escoceses, que no referendo de 2016 votaram pela permanência na Europa (63%), animaram-se com a possibilidade de um novo plebiscito para deixar o Reino Unido. Na região, o Partido Nacional Escocês venceu a eleição geral de dezembro, o que deu a sua líder, a primeira-ministra escocesa Nicola Sturgeon, a sensação de que terá poderes para consultar a população novamente. Johnson já disse que não permitirá novo pleito enquanto estiver no cargo.

A Irlanda do Norte, cada vez mais próxima da vizinha próspera, a República da Irlanda, também votou majoritariamente pela permanência na UE.

Nada será como antes

O acordo de transição negociado por Johnson com Bruxelas traz o risco de que sejam criados controles na fronteira entre a província e o território da Irlanda, membro da UE, banidos pelo Acordo da Sexta-Feira Santa de 1998, que pôs fim ao sangrento conflito entre norte-irlandeses favoráveis à permanência no Reino Unido e os defensores da unificação irlandesa.

— A depender de como liderá com as tantas diferenças que terá de enfrentar a partir de 31 de janeiro, Boris Johnson pode ser o último primeiro-ministro do Reino Unido tal como conhecemos hoje — disse De Ruyter.

Como definiu um diplomata europeu baseado em Bruxelas, o Reino Unido tal como existia até o governo do premier trabalhista Tony Blair (1997-2007) acabou, depois de ser implodido pelo Brexit de Cameron e pela onda de apoio aos conservadores de Johnson nas antigas regiões industriais do interior e do Norte da Inglaterra.