O Globo, n. 31606, 18/02/2020. País, p. 4

Relação conturbada: estados reagem a Bolsonaro

Bernardo Mello
Isabella Macedo
João Paulo Saconi

 

Após se eleger com apoio explícito de 15 dos 27 governadores em 2018, o presidente Jair Bolsonaro coleciona atritos com os representantes dos estados e desagrada à maioria dos antigos apoiadores. Os episódios públicos de confronto, que incluem trocas de farpas e disputas judiciais entre estados e União, se acirraram ontem com a publicação de uma carta, assinada por 20 governadores, com críticas às declarações de Bolsonaro sobre a morte do ex-PM Adriano da Nóbrega. O texto diz que as afirmações de Bolsonaro se antecipam a “investigações policiais para atribuir fatos graves às condutas das polícias e de seus governadores”, além de não contribuírem “para a evolução da democracia no Brasil”.

A iniciativa da carta partiu dos governadores de Rio, Wilson Witzel (PSC), e São Paulo, João Doria (PSDB), que não têm sido recebidos pelo presidente. “É preciso observar os limites institucionais com a responsabilidade que nossos mandatos exigem. Equilíbrio, sensatez e diálogo para entendimentos na pauta de interesse do povo é o que a sociedade espera de nós”, diz a carta. O Planalto não comentou o texto.

Os embates vão na contramão das administrações de Fernando Henrique, Lula, Dilma Rousseff e Michel Temer, que fizeram acenos públicos em busca de harmonia com os estados no primeiro ano de governo. Neste mês, Bolsonaro também aprofundou as rusgas ao excluir governadores do recém-criado Conselho da Amazônia e desafiar estados a zerar o ICMS sobre combustíveis.

Na semana passada, 22 governadores assinaram nota com críticas à fala de Bolsonaro sobre o ICMS e pedindo “um debate responsável acerca do tema”. Na ocasião, Doria disse que a medida era “bravata”. Bolsonaro rebateu afirmando que “isso não é populismo, é vergonha na cara”. Witzel chamou a proposta de “irresponsável” em um grupo de WhatsApp dos governadores. Ele já declarou mais de uma vez que Bolsonaro tem ignorado seus pedidos de audiência para tratar, entre outros assuntos, da renovação do acordo de recuperação fiscal com a União.

Antecipação eleitoral

O deputado federal Gurgel (PSL-RJ), coordenador da bancada do Rio na Câmara, afirma que tentou fazer as pazes entre Witzel e o presidente por meio do senador Flávio Bolsonaro (sem partidoRJ), que deixou o PSL em novembro. Hoje, Gurgel é mais próximo a Witzel.

— Diante das coisas que têm que ser alinhadas, como a recuperação fiscal, talvez mais para frente a gente possa ter a noção de algum impacto caso isso não seja solucionado — disse Gurgel.

Na avaliação do deputado Capitão Augusto (PL-SP), a antecipação da corrida eleitoral de 2022 levou os governadores paulista e fluminense a abandonarem possibilidades de alinhamento com o governo federal diante das rusgas, impactando na elaboração de políticas públicas inerentes ao Executivo.

— O presidente naturalmente é um candidato à reeleição, mas houve uma antecipação da eleição pelos governadores (Witzel e Doria), criando uma queda de braço que é prejudicial sobretudo para o Executivo e para os próprios estados — afirmou.

Em outra frente contra o governo federal, Ibaneis Rocha (MDB) ingressou com um pedido no Supremo Tribunal Federal para que Marcola, líder de uma facção criminosa de São Paulo, seja transferido do presídio federal de Brasília. O governador do DF, que declarou apoio a Bolsonaro no segundo turno em 2018, manifestou “repúdio” à presença de líderes de facções e afirmou que “Brasília é a capital da República e assim deve ser tratada”.

Há divergências com o Planalto partindo até mesmo de governadores eleitos pelo PSL, antiga sigla de Bolsonaro. O governador de Santa Catarina, Carlos Moisés, é um dos signatários da nota sobre o ICMS, mesmo declarando que continua fiel às bandeiras do bolsonarismo. Em entrevista à NSC TV, afiliada da TV Globo em seu estado, Moisés defendeu a reforma tributária prometida pelo governo como melhor solução para o impasse.

— Acho que a bola ‘quicou’ para todos os governadores e para dizer o seguinte: ‘Olha, nós queremos exatamente aquilo que foi prometido, mais Brasil, menos Brasília, menos União’ — disse.

Na última sexta, Moisés deu mais um sinal de afastamento para o presidente ao indicar para a liderança do governo na Assembleia Legislativa de Santa Catarina a deputada Paulinha, do PDT, sigla de oposição a Bolsonaro.

O cientista político Fernando Schüler, do Insper, vê nos atritos entre Bolsonaro e governadores uma repetição da “desconfiança com o ambiente político” e com o “diálogo institucional” sinalizados pelo presidente na campanha eleitoral de 2018. Para Schüler, o “jogo retórico que se alimenta da polarização” também interessa a governadores que fazem oposição a Bolsonaro, sejam eles ex-aliados, como Doria e Witzel, ou de partidos de esquerda, como a maioria dos governantes do Nordeste, única região em que o então candidato do PSL não saiu vitorioso em 2018. Bolsonaro já entrou em colisão ao se referir aos governadores da região como “paraíba”, em julho do ano passado, e voltou a acirrar os ânimos com a declaração de sábado em relação ao governador da Bahia, Rui Costa (PT). Na discussão, por meio de notas oficiais, Costa e Bolsonaro se acusaram de manter vínculos com “bandidos”.

Zema, do Novo, quer aumento de 41,7% para policiais

O projeto do governador Romeu Zema (Novo) de reajuste salarial de 41,7% para servidores da área da segurança pública será votado nesta semana pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG). O texto, que prevê aumentos escalonados até 2022, foi saudado por aliados do presidente Jair Bolsonaro no estado, mas criticado pela oposição a Zema, por deputados do próprio partido do governador e pelo presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEMRJ), que colocou em dúvida a adesão de Minas ao regime de recuperação fiscal.

O reajuste, costurado após pressão dos policiais no ano passado, terá impacto de R$ 9 bilhões no orçamento. Dos três deputados do Novo na ALMG, dois se posicionaram contra a medida. O deputado Bartô citou a crise financeira de Minas, que não quitou todo o 13º de 2019 e a folha salarial de janeiro, e criticou “políticos que fazem demagogias diante da situação fiscal”. Ao tomar posse, em 2019, Zema disse que o déficit previsto era de R$ 30 bilhões, e que a folha salarial comprometia 80% dos recursos. Ele pregou o enxugamento da máquina.

Guilherme Cunha, também do Novo, contestou o discurso de Zema de que o reajuste seria uma “recomposição salarial” e disse que os aumentos estão acima da inflação, o que contraria a recuperação fiscal. Laura Serrano foi a única do Novo a defender a medida. Procurado, o presidente nacional da sigla, João Amoêdo, não retornou.

Já Rodrigo Maia criticou a iniciativa de Zema e lembrou o desejo de Minas de aderir à recuperação fiscal, que precisa ser aprovada pelo governo federal. Maia defende a necessidade de uma reforma administrativa em nível federal para “corrigir distorções da máquina pública”, e tem estimulado que os estados sigam caminho igual:

— Como é que Minas vai dar três aumentos que somam 40%? Não vai sobreviver (financeiramente) e vai perder condições de aderir à Lei de Recuperação Fiscal. Ou vai cancelar o aumento, ou não vai aderir ao regime.

Deputados de oposição também afirmaram que o reajuste salarial entra em contradição com o discurso de escassez de recursos. Após o estrago deixado pelas chuvas em Minas, com 60 mortes, Zema disse não haver verbas para obras de infraestrutura e pediu aos deputados que apoiem o regime de recuperação fiscal e a reforma da Previdência estadual, como forma de dar mais fôlego às finanças. Para o líder da oposição na ALMG, André Quintão (PT), Zema fez uma escolha com “componente político” ao dar o reajuste antes de enfrentar a pauta econômica.

Em nota, o governo de Minas justificou que, mesmo sem reajuste desde 2015, as forças de segurança “conseguiram reduzir todos os índices de criminalidade”, e a “severa crise financeira” impede a “recomposição salarial” para outras categorias.